Há algum tempo, lembro-me de ter assistido a um concerto memorável aqui em Belo Horizonte. O grande regente Isaac Karabtchevsky conduzia, pela primeira vez, a jovem Filarmônica de Minas Gerais no Palácio das Artes. Foi, no mínimo, uma apresentação estupenda. Entretanto, pude notar, no meio da segunda parte, algumas pessoas decepcionadas deixando o teatro. Poucas, é verdade. Porém, após o concerto, o que mais se ouvia no foyer do Grande Teatro eram comentários e críticas negativas do público sobre o que havia acabado de se ouvir. No programa, figurava o Concerto para Orquestra, de Béla Bartók.
Esse episódio, junto a tantos outros, me levou novamente àquela velha reflexão sobre a dificuldade que enfrenta a arte moderna em chegar à compreensão do grande público ainda hoje. Muito disso se deve ao fato de o início do século XX, como já foi discutido aqui, marcar uma série de rupturas com as regras do sistema tonal, cuja harmonia apresenta funções definidas, criando situações de repouso, tensão, afastamento, interrogação e conclusão. Esse sistema era explorado na música européia desde a Renascença, ao lado das outras quatro escalas modais litúrgicas, e suas duas escalas, jônia e eólia - tons maiores e menores, respectivamente - indubitavelmente foram soberanas e quase únicas na construção da música desde o Barroco até fins do século XIX. Porém, chegou-se a um ponto em que as opções que oferecia tornaram-se restritas perante ao grande desenvolvimento que a harmonia vinha sofrendo nas últimas décadas do ottocento. Pode-se dizer que foram utilizadas tantas novas sonoridades e atmosferas, que não haviamais sentido em ficar preso às resoluções tonais, aos mesmos acordes, às mesmas funções. Isso seria restingir o processo de evolução e desenvolvimento pelo qual toda arte passa. E então o tonalismo foi deixado pra trás, a partir de Debussy, Schoenberg, Stravinsky e tantos outros. Porém, a nova música, por não contar com sonoridades que desempenhem funções tão "facilmente" assimiláveis aos ouvidos do público consumidor de música. E a música popular ocidental, fruto da sociedade urbanizada cosumidora, manteve em sua quase totalidade o tonalismo, e foi abraçada por multidões de pessoas, pela sua identificação com a cultura de um povo (e, mais tarde, por imposição da mídia ao consumidor - mas isso é outro caso, para outra história).
O abandono do sistema tonal não aconteceu da noite para o dia. Foi um processo lento e gradual, sendo Schoenberg o grande marco da ruptura completa. Todavia, não se pode afirmar que tudo após Schoenberg é puramente atonal. Compositores importantíssimos para a literatura musical moderna fizeram sua obra nos limites entre o tonalismo e o atonalismo, durante toda a primeira metade do século XX. Entre tantos deles, quero aqui destacar um trabalho de um: Béla Bartók, o compositor do concerto que tanto pavor causou entre os espectadores por aqui.
Nascido no interior do que então era a Hungria, na pequena cidade de Nagyszentmiklós (não me perguntem a pronúncia), Bartók introduziu uma idéia que, até seu tempo, era incomum na música europeia: buscar exclusivamente no campo a inspiração para sua produção. Poucos anos antes, o tcheco Leoš Janáček havia iniciado um trabalho de pesquisa sobre a música tradicional dos povos eslavos, contudo incluía o folclore das cidades. A intenção desses compositores era expressar a realidade - algo comparável ao trabalho dos escritores realistas. A maneira que, na música, foi encontrada por Janáček e Bartók foi introduzir um material folclórico em sua obra, com o mínimo de maquiagens possível. Seria a expressão perfeita da vida de seu povo. Nesse ponto, Bartók foi ainda mais radical que o colega tcheco - viajando pelo interior da Hungria, pôde perceber as enormes diferenças entre as reproduções da música folclórica nas grandes cidades e a música realmente feita no campo. Não seria absurdo dizer que a cidade moldava as canções tradicionais, adaptando-as para seus consumidores. Por essas razões, Bartók decidiu dedicar sua pesquisa única e exclusivamente às áreas rurais. A música que surgiria dali teria, mais que qualquer outra, a expressão de um povo, seria o nacionalismo pleno. Seria rigidamente húngara, se houvesse se restringido apenas a seu país. Porém, consciente de que para alcançar seu ideal de fazer a arte de acordo com a realidade, Béla viajou o interior da Romênia, Sérvia, Croácia, Bulgária, Turquia e parte do norte da África, acompanhado de um cilindro fonográfico no qual registrava as canções que coletava, desenvolvendo uma nova linguagem, mais que nunca tradicional. Isso rendeu duras críticas ao estilo do compositor. Alexander Ross, em seu fantástico O Resto é Ruído (Companhia das Letras, 2009), afirma que a obra do compositor na Hungria, sua terra natal, era tido como cosmopolita em excesso, para quem desejava ser nacionalista. Fora dela, nacionalista em excesso.
O fruto do trabalho de pesquisa folclórica de Bartók foi uma música, ao mesmo tempo, tradicional e inovadora. Assim como nas canções do campo, havia compassos "quebrados", acentos fora dos tempos fortes do compasso, mas também havia alguma rigidez formal quando necessário. Escalas diferentes das escalas tonais eram exploradas, além de aparecer a pluritonalidade (uso simultâneo de tons diferentes). Consequentemente, dissonâncias e sonoridades diferentes surgiram na música do compositor húngaro, muito além do que previam as regras do tonalismo. Há quem defenda que as composições Bartók apenas não se tornaram atonais por causa da sua grande fidelidade ao folclore que este cultivava.
O que trago hoje é uma composição resultante das pesquisas de Béla Bartók na Romênia. Compostas em 1915, as Danças Populares Romenas (Román Népi Táncok) são seis pequenas danças para piano que exploram temas de caráter popular. Uma característica comum a quase todas elas (a segunda dança é exceção) é a utilização dos mesmos motivos melódicos com acompanhamentos harmônicos diferentes, causando impressões distintas sobre as mesmas melodias. Pode-se notar, também, que a harmonia presente foge um pouco ao que estamos acostumados a perceber na música tonal. Isso se deve ao fato de, como foi dito anteriormente, escalas exóticas serem amplamente utilizadas fora dos grandes centros urbanos. Também é possível perceber, especialmente na terceira e na quarta danças, as inconstâncias rítmicas, desde os acentos inesperados até a mudança das unidades de compasso. E seu caráter moderno se dá, em grande parte, por causa dessas sutis diferenças. É essa a música que realmente representa um povo. Esqueçamos, então, ao menos um pouco, as maquiagens urbanas.
A interpretação é, pela primeira vez no blog, deste que lhes escreve:
Download da gravação de Emil Gilels aqui.
4 de fevereiro de 2011
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