A obra do compositor tcheco Antonín Dvorák é musicologicamente reconhecida pelo seu caráter nacionalista e, até certo ponto, ufanista, usando sem nenhuma timidez diversas melodias e ritmos encontrados na música folclórica eslava. Um trabalho de pesquisa que levou esse caráter musical tcheco a níveis mais profundos viria a ser feito com o compositor moderno Leos Janacék, que ia a cafés e restaurantes de seu país para anotar aspectos rítmicos que encontrava na fala de seus compatriotas. Isso levou a uma semelhança grande entre o ritmo do idioma falado e o ritmo da obra musical. Quanto a Dvorák, pelos motivos já ditos, há a afirmação recorrente de que sua música é essencialmente rapsódica e isso o destaca dentro do período romântico. Esse caráter se faz presente em grandes composições de sua autoria, como o Trio “Dumky”, sua famosa e belíssima Sinfonia do “Novo Mundo” e seu Concerto para Violoncelo em si menor. Além disso, Antonín Dvorák era conhecido pela incrível facilidade com que as idéias surgiam, sempre aos borbotões, em sua mente. Por isso mesmo, conquistou uma profunda admiração de outro grande mestre do Romantismo – o alemão Johannes Brahms.
Mesmo tendo como instrumento o piano, assim como muitos que integram a equipe do blog, ouso dizer que um dos concertos de que mais gosto, dentre todos os que conheço, para quaisquer instrumentos, é o Concerto para Violoncelo em si menor, de Dvorák. Em 1968, durante a invasão da Tchecoslováquia pelos russos, na “Primavera de Praga”, o grande violoncelista Mstislav Rostropovich executou esse concerto (de um compositor tcheco) como forma de protesto. Antes de tudo, vou sucintamente abordar a forma musical concerto para facilitar o entendimento daqueles que, porventura, não estiverem familiarizados com ela. O termo concerto vem do latim “concertare”, que significa combater lado a lado. Musicalmente, isso se traduz em uma obra composta para uma orquestra e para um ou mais instrumentos solistas. A forma concerto foi consagrada por Vivaldi, ainda na música barroca, que estabeleceu por meio de tantos concertos que compôs uma escrita usual em três movimentos, sendo o segundo de andamento mais lento. Habitualmente, encontramos o termo “concerto grosso” em referência a concertos em que um pequeno grupo de instrumentos (denominado “concertino”) rivaliza com toda a orquestra (denominada “tutti”). Esses concertos “grossos” eram comuns no período barroco (do próprio Vivaldi, de Corelli, de Bach, dentre outros). Passaram por muitos anos de ostracismo, até voltarem, em certa medida, a atrair a atenção de compositores modernos, como Béla Bártok e Paul Hindemith.
Aqui, vale lembrar ainda o humor áspero de Ígor Stravinsky ao se referir aos concertos de Vivaldi: “Vivaldi não compôs centenas de concertos, mas sim um único concerto repetido de centenas de vezes”. Inegavelmente, quer sejam mais ou menos interessantes, os concertos de Vivaldi foram fundamentais no entendimento que perdurou sobre essa forma musical. De uma maneira geral, a forma concerto consta também de uma cadência, que pode aparecer em qualquer um dos três movimentos, mas que costuma aparecer no primeiro. A cadência é um trecho em que o instrumento solo executa uma passagem geralmente virtuosística, com a orquestra em silêncio. Isso ocorre na recapitulação do tema, que foi anunciado no início do movimento (na chamada exposição) e, após executada a cadência pelo solista, a orquestra retorna para uma conclusão magistral do movimento. É interessante notar que muitos concertos compostos antes de Beethoven exibiam a cadência como um momento de improvisação do solista. Após Beethoven, era o próprio compositor quem escrevia a cadência.
Feitas todas essa considerações, volto ao concerto de Dvorák. O primeiro movimento é um Allegro, no qual os primeiros motivos e o tema são anunciados já nos compassos iniciais pelos clarinetes, pelas flautas e pelas cordas e uma entrada efusiva de toda a orquestra consolida a exposição do tema. Esse tema teve sua inspiração, vale ressaltar, no segundo movimento da quarta sinfonia de Brahms. Outras idéias começam a aparecer aos poucos, em uma tranqüila e apaixonada melodia executada pela trompa e novamente pelos clarinetes. O que a trompa nos vem a cantar é o segundo tema do movimento, mais introspectivo e melancólico que o primeiro. O violoncelo surge, então, com sua voz penetrante e, a partir dos temas já expostos, faz o desenvolvimento de cada vez mais idéias. Agora, também a bela melodia que já havíamos conhecido na voz da trompa é cantada e levada adiante na voz do violoncelo. Após uma breve explosão orquestral, que transfigura o primeiro tema, nos deparamos com uma conversa bastante livre entre o violoncelo e a flauta e, depois, entre o violoncelo e o oboé. A conclusão do movimento se dá com o canto dos trombones e trompetes, que arremata todas as idéias empregadas. É importante que se perceba nesse Allegro a constante dualidade que se vive. Do início ao fim, ficamos em um trânsito irresoluto entre a vibrante alegria e o intimismo, entre os tutti orquestrais e a sensação de isolamento que traz consigo o canto solitário dos instrumentos.
O segundo movimento, um Adagio ma non troppo, se inicia com fagotes e clarinete evocando um tema tranqüilo e muito cantado, que é repetido pelo violoncelo e, depois, retomado com mais vida em um trio de madeiras (clarinete, fagote e oboé). O tema aqui exposto é dolente, mas contém também algo de esperançoso, revelado tanto pelo solista como pelo lindo uso das madeiras. A entrada poderosa de um tutti orquestral lança um segundo tema ao movimento e o seu desenvolvimento é assumido pelas madeiras, pelas cordas e também pelo solista. Após passagens tempestuosas que esse executa, acompanhado pelas madeiras e, mais adiante, pelo pizzicato das cordas, o tema inicial é retomado pelas trompas. A seguir, virá um doloroso trecho em que o violoncelo prossegue seu caminho de certo modo solitário, mas ao qual se interpõe uma flauta, que tenta lhe dar esperança e tirá-lo de seu sôfrego escapismo, ao executar breves passagens às quais os trinados conferem um brilho especial. O clarinete retoma a esperança lânguida do primeiro tema e o oboé lhe canta em concordância. Esse trecho é belíssimo e o efeito da instrumentação usada é sublime. O sofrimento do violoncelo, em sua melancolia sem fim, dialoga com murmúrios de esperança das madeiras. E tudo se conclui sem a definição de qual dos sentimentos vencerá.
O terceiro e último movimento, um Allegro moderato, se inicia em compasso de marcha nas cordas graves e, após ouvir o primeiro tema sendo anunciado pelas trompas e migrando ainda para os clarinetes e as cordas, irrompe um enérgico tutti. Ao longo do movimento, ouvimos a um violoncelo que desenvolve o tema juntamente com outros rompantes orquestrais, que prosseguem com o mesmo vigor inicial. Clarinete e violoncelo conversam triste e calmamente sobre as suas desventuras. Após um trecho em que o violoncelista executa notas rápidas (quase em escalas) e muito ornamentadas, a orquestra retorna. Um segundo tema, dançante e livre, surge aos poucos e passa de instrumento em instrumento, inclusive pelo violoncelo, em fragmentos motívicos. O solista enfrenta trechos velozes e muito dinâmicos, em melodias angulosas e inquietas. Os metais anunciam a última parte do movimento, um trecho muito sofrido e, em minha opinião, o mais belo de todo o concerto. O violoncelo parece destilar o mais sincero de seus sentimentos, sob o acompanhamento dos sopros, especialmente das madeiras, mas também dos trompetes. Reaparece aqui o tema inicial do concerto. O spalla, junto a um clarinete, se entrega ao sentimentalismo do violoncelo e ouvem-se, ao longe, os clarinetes e as trompas cantando novamente os motivos iniciais do primeiro movimento, enquanto o violoncelo executa um longo trinado e, depois, nos conta alguns de seus últimos lamentos. Uma coda arrebatadora, iniciada por um longo crescendo do violoncelo, é finalizada por um tutti imperioso e definitivo.
Na postagem anterior, fui tradicional na gravação que indiquei. Agora, que me desculpem a du Pré (que merecia uma postagem só sobre ela, por sua brilhante carreira, infelizmente abreviada por uma esclerose múltipla) e o Rostropovich, mas não vou indicá-los, embora suas gravações sejam lindíssimas. Vou de cara e de alma nova, com a gravação do violoncelista Jean-Guihen Queyras, sob a batuta de Jirí Belohlávek e sua da Filarmônica de Praga. Podem confiar, essa gravação é também excelente. O CD vem ainda com o Trio "Dumky". Sem mais blá blá blá, deixo vocês com o Concerto para Violoncelo em si menor, de Antonín Dvorák.
Até a próxima!
Nenhum comentário:
Postar um comentário