
Nenhum gênero literário serviu melhor para a imaginação infinita de Cortázar como o conto o fez. As oito narrativas que integram Todos os fogos o fogo (obra publicada três anos após o seu romance mais consagrado, O jogo da amarelinha) revelam uma poética incisiva e a incrível habilidade do escritor em contrair suas fantásticas estórias neste gênero tão árduo de se escrever, onde um causo é a sua estrutura de enredo básica e fundamental e onde se busca prender a atenção do leitor já nas primeiras linhas, até “vencê-lo por nocaute”.
Julio Cortázar, em grande parte da sua vasta obra, se integra dentro de uma literatura que foi uma das grandes seduções da América Latina no século XX: o realismo mágico. Apesar desta de ter ocupado, com integridade, a posição mais confortável das escolas literárias latinas, o realismo fantástico (também assim chamado) foi inicialmente ignorado. Contudo, com os esforços dos escritores que já estavam imbuídos nesta sedução, logo na segunda metade do século, acabou por ser mais popularizado, abarcando e jogando também ao mundo nomes como Jorge Luis Borges e Gabriel García Márquez.
Militante entre as causas políticas, pedagogo, crítico, ensaísta e ficcionista. Cortázar, afinal, fora muitos. Nascido em 1914, na capital da Bélgica, em uma Europa ainda garrida e suprema economicamente, Julio acabou, no entanto, sendo considerado argentino após a sua repatriação na Argentina (berço de sua família), quatro anos após.
Em 1966, quando Cortázar já estava em Paris (fora para a França já há 15 anos, pelo descontentamento no governo em seu país), Todos os fogos o fogo fora, então, publicado. Tal obra ocupa um lugar considerável nos trabalhos do autor, tanto pelas belezas poéticas formuladas quanto pelo trabalho da linguagem construído — este, aliás, como em toda a sua obra, sempre fora uma preocupação do autor, refletindo-se em cada conto deste livro e se expressando de forma singular; e tal singularidade o autor arquitetou com precisão, aliando tal linguagem poética às estórias brilhantes de sua imaginação, criando, portanto, a linguagem cortazariana, a linguagem que lhe fez fama.
Pretendo, nas próximas linhas, comentar com uma visão um pouco subjetiva sobre cada conto deste magnífico livro há pouco reeditado no Brasil. Os comentários servem para os leitores que ainda não conhecem esta obra e para aqueles que igualmente já o leram. Para os primeiros, ambiciono estimulá-los a conhecer mais os escritos deste grande escritor, comentando o conto, analisando-o, sem jamais, porém, revelar o final de cada estória (mesmo porque Cortázar viria de Montparnasse para me xingar) ou de alguma forma estragar as surpresas que possam advir do enredo. Para aqueles que já conhecem Todos os fogos o fogo, serve-se a uma nova visão destes textos que são tão polifônicos e complexos em sua estrutura. Também para este leitor, sinta-se livre para comentar dos meus apontamentos, discordando ou da mesma forma concordando — apesar de Cortázar ser único, sinto que a multiplicidade de vozes dos seus escritos me façam não atinar para algo e, cada vez que o releio, um pouco mais sempre posso acrescentar nos comentários... Sempre. Sempre a magnificência de suas obras...
A auto-estrada do sul
O conto que abre Todos os fogos o fogo retrata a sociedade moderna num acontecimento banal (por assim dizer) e extremamente confuso das grandes metrópoles: o congestionamento. Não é, no entanto, um congestionamento comum, aquele que estamos mais habituados, mas sim algo de proporções descomunais, atravessando dias e madrugadas para se locomover poucos metros, quando uma dezena já era muito. Cortázar, em toda a obra, jamais revela o motivo do engarrafamento, mas isto é um detalhe irrisório comparado ao que ao conto segue a focar em todos os seus pequenos e críticos detalhes, entre “o calor, os impostos, o tráfego, um assunto atrás do outro, três metros, outro lugar-comum, cinco metros, uma frase sentenciosa ou uma maldição contida.”
A auto-estrada do sul destaca, inconcusso, as relações humanas e suas conseqüências dentro de um círculo de congestionamento. A narração, em terceira pessoa, descreve todos os personagens através de suas características e seus carros, somente, como o “Engenheiro do Peugeot 404” e a “Moça do Dauphine”. Formam-se, presos em conjuntos de carros estabilizados, grupos mistos de pessoas que se vêem obrigadas a se relacionar, redescobrindo, de tal forma, a ação e a consciência humana de cada um que foi esquecida numa época onde tudo se apressa, onde não se há mais tempo e fragilizam-se as relações há tempos perdidas. Em vista da situação, que de longe parecia passageira, organizam-se pequenas bases sociais, elegem um líder e estabelecem básicas ordenações de um civilizado convívio. (Isto não ocorre somente no grupo que é mais privilegiado na narração, mas sim, igualmente, em todo agrupamento de carro que se segue.) A micro-sociedade de Cortázar possui personagens sem passado e futuro, criando diplomacias realistas, sofrendo de condições angustiantes, tensões e comunicações; possui até o seu mercado negro. E é justamente esta sociedade uma sociedade realista, justificada e legitimada na imaginação.
Obra que se equivale como grande metáfora desta época de hurry up, A auto-estrada do sul se impede de congregar seu valor e sua crítica em poucas palavras, ou resumos do que possa basicamente o ser. Texto de profunda sensibilidade, vale como apreciação e análise de como se vive basicamente a vida atualmente e o seu entendimento contínuo e re-contínuo.
A saúde dos doentes
O filósofo Nietzsche, em Humano, Demasiado Humano, ao examinar por qual motivo é mais natural os homens dizerem a verdade, justifica que “a mentira exige imaginação, dissimulação e memória.”
A saúde dos doentes representa um conto cujo enredo é norteado pela mentira; representa um drama familiar que é vivenciado diariamente — e, de tal maneira, entranhado — quando a vida de todos os familiares é alterada a partir do instante em que Alejandro, já próximo a Montevidéu, sofre um acidente de automóvel e morre. A notícia da tragédia, porém, é ocultada da mamãe (personagem só assim descrita), pois, devido à sua enfermidade, a ciência do infortúnio do seu filho poderia igualmente levá-la embora. A trama, pois então, parte-se da “imaginação, dissimulação e memória” dos seus irmãos e filhos que tentam, a vários modos, esconder toda informação que possa revelar a verdade: apreensão do jornal La Nación; preservação de uma estória viva, antes verídica (de que Alejandro ainda trabalhava numa firma na capital de Pernambuco, e que sua visita ainda não se fazia presente pela impossibilidade de se ter férias); e a criação de cartas “enviadas por Alejandro” para corroborar as notícias. A situação de toda a simulação se agrava a partir do momento em que Tia Clélia também adoece. Mais inverdades, então, surgem; mais invenções para cuidar da mamãe crescem.
A beleza deste conto encontra-se no que o tempo é capaz de compor, em que teias intermináveis uma mentira se pode estender e fazer de tudo uma “comédia”, como a personagem Tia Clélia descreve. A narrativa parece ser construída para ser assim, somente, para levar e demonstrar o tempo por si só; no final — final este a compor um dos mais magistrais deste conjunto de oito narrações que compõe o livro —, Cortázar nos mostra que, quando nos habituamos a uma mentira, esta pode, inevitavelmente, tornar-se, no fundo, uma verdade.
Reunião
“Mas agora vale a pena aproveitar esta calma absurda, deixar-se estar olhando o desenho feito pelos galhos da árvore contra o céu mais claro, com algumas estrelas, seguindo com os olhos semifechados esse desenho casual dos galhos e das folhas, esses ritmos que se encontram, se sobrepõem e se separam, e às vezes mudam suavemente quando uma rajada de vento quente passa por cima das copas, vindo dos pantanais. Penso em meu filho que está longe, a milhares de quilômetros, num país onde ainda se dorme na cama, e sua imagem me parece irreal, afina-se e perde-se entre as folhas da árvore, e, em compensação, me faz tanto bem lembrar o tema de Mozart, que sempre me acompanhou, o movimento inicial do quarteto A caça, a evocação do halali na voz mansa dos violinos, essa transposição de uma cerimônia selvagem para um claro gozo pensativo. Penso-o, repito-o, cantarolo na memória e sinto, ao mesmo tempo, como a melodia e o desenho da copa da árvore contra o céu vão se aproximando, travam amizade, unem-se uma e outra vez até que o desenho se arrume, de repente, na presença visível da melodia, um ritmo que saiu de um galho baixo, quase à altura de minha cabeça, torna a subir até certa altura e se abre como um leque de galhos, enquanto o segundo violino é esse galho mais fraco que se justapõe para confundir suas folhas num ponto situado à direita, perto do final da frase, e deixá-la acabar para que o olho desça pelo tronco e, possa, se quiser, repetir a melodia. E tudo isso é também a nossa rebelião, é o que estamos fazendo, embora Mozart e a árvore não possam sabê-lo, enquanto nós, à nossa maneira, quisemos transpor uma guerra tosca para uma ordem que lhe dê sentido, que a justifique e, finalmente, a conduza a uma vitória que seja como a restituição de uma melodia após tantos anos de roucas trompas de caça, que seja esse allegro final que sucede ao adágio como um encontro com a luz.” (p. 75 e 76)
Tal fascinante e poético monólogo interior que se recheia de reminiscências, Mozart, galhos e folhas, é, ficcionalmente, da mente de Che Guevara. Cortázar, em Reunião, usa esta importante figura histórica que ele bastante admirava para servir-se como narrador de guerrilheiro em situações de dificuldade, sobre a mira de armas, em indecisões e dúvidas que pairam sobre o pensamento, na angústia de não saber se Luís está realmente vivo e se em algum momento, fatigado e desesperançado, ainda iria encontrá-lo para poder abraçá-lo e se felicitar no universo da revolução.
Senhorita Cora
Por trás de uma trama, por assim dizer, basicamente simples, Senhorita Cora esconde um conto de grandes proporções em todos os sentidos, desde o recurso estilístico usado até a uma estória que agrega os mais variados sentimentos. Ora, é um apelo patético inteiramente verdadeiro.
O enredo parte-se da relação dos personagens entre si e sua conseqüente formação em variados modos. Pablo, um garoto, é internado numa clínica para uma operação de apendicite e, a partir daí, conhece a Senhorita Cora, sua enfermeira. Embora o tema se argumente mais nos dois (no começo de afinidade de equívocos, de suposições sobre comportamento, de compaixão), há ainda no conto outras relações de aspectos diferentes, como da Senhorita Cora com a mãe protetora do garoto.
À primeira leitura (e ainda a uma segunda, terceira...), o insólito encaixa-se no recurso estilístico comentado acima: há um câmbio entre os narradores em primeira pessoa, ora é Pablo em seu monólogo interior, ora é sua mãe, ora é Senhorita Cora e assim por diante, entre outros personagens menores (os médicos) com a extensão da narração proporcional aos seus papeis. No começo, a narração pertence à mãe do garoto, mas ainda no primeiro parágrafo, com a demarcação de um ponto apenas, passa-se a voz para seu filho:
“Tenho que ver se o cobertor agasalha bem o menino, vou pedir, por via das dúvidas, que deixem um outro à mão. Mas sim, claro que estou agasalhado, ainda bem que eles foram embora de vez, mamãe acha que sou um garoto e me obriga a fazer cada papelão.” (p. 92)
Ainda um pouco mais a frente, a ruptura sintática para a mudança de narração ocorre entre vírgula, igualmente com Pablo e sua mãe:
“Pouco depois chegou mamãe, que alegria de vê-lo tão bem, eu temia que o meu coitadinho querido tivesse passado a noite em claro [...]” (p. 94)
É necessário, portanto, muita atenção por parte do leitor para não se perder no emaranhado de vozes que vão surgindo, dando a beleza da narrativa. Percebe-se, como em grande parte das obras de narrativa em primeira pessoa de Cortázar, uma amálgama interessante onde sentimentos e pensamentos, pontos de vistas e sensações repentinas ou passadas e formas subjetivas do raciocínio mesclam-se sem grandes formalidades, criando parágrafos enormes, favorecimento da vírgula em detrimento do ponto, poucos travessões e nenhuma mudança de voz com aspas. Cortázar fez do seu particularismo uma fluência notável em suas obras, e sua imaginação poética possibilitou um lirismo caro em Senhorita Cora. É de uma beldade surpreendente esta obra; obra que transcorre a relação de uma enfermeira e seu paciente, do mal-entendido a uma profunda ternura. O fluxo de consciência, a simultaneidade de vozes e seus pontos de vista, os temas da doença filtrados por uma bala de hortelã, a incerteza por toda a narração entre “acho” e “talvez” que ocorre entre as vozes, enfim, tudo, também desde Pablo querer chamar “Senhorita Cora” por apenas “Cora”, fazem deste conto uma obra-prima.
A ilha ao meio-dia
“Felisa contou-lhe que os pilotos o chamavam o louco da ilha, mas ele não se incomodou.” (p. 127)
Quando da primeira mirada (recordando-se mais o idioma do escritor), quando da primeira olhadela de Marini através do “oval azul da janela” ele enxerga o litoral da ilha, começa-se um jogo de real e irreal em cada linha desta obra. Conto escrito em terceira pessoa, o narrador, onisciente, descreve, indiretamente, as transformações psicológicas pelas quais passam o comissário de bordo ao adquirir, pouco a pouco, uma alienação da visão da ilha-tartaruga que lhe surgiu, pela primeira vez, ao meio-dia.
Uma deficiência social de liberdade faz Marini desprender-se desesperadamente das preocupações com a vida, das novas chances de um melhor trabalho e da moléstia com tudo que lhe cerca. Ocupa-se, portanto, das compras de livros sobre as ilhas gregas, de todas as referências que os colegas possam lhe dar; até, de arroubo, decidir-se estar lá, sobre as areias do litoral. E é aí que, talvez, surja a extensão do surrealismo neste conto que, no entanto, no início, nem indícios revelavam sobre sua essência: Marini, na arrelia de pisar no solo da ilha, transforma-se em “dois eus”? Parte-se de uma visão utópica o pescador que ele vira? Parte-se, novamente, da mesma visão utópica, tudo o que ele vira e sentira?
É uma grande experiência habituar-se e estar com Marini, ver com seus olhos e adquirir uma visão imparcial que é a do leitor. A ilha ao meio-dia distingue-se dos outros contos e se destaca por, talvez, chegar ao limite do surrealismo; ainda é importante destacar, à primeira leitura, como o narrador, se embrenhado na consciência de Marini, nos conta, sutilmente: “Não seria fácil matar o homem velho, mas ali no alto, tenso de sol e espaço, percebeu que a empresa era possível.” Até quando, portanto, reforçamo-nos da super-realidade que ali está? Que ali, incrivelmente, nos prende?
Instruções a John Howell
Rice, entediado no fim de semana, entra em um teatro de Londres e resolve assistir a uma comédia. O primeiro ato não o interessa, considera-o medíocre. No entreato (o intervalo para o próximo ato), porém, as banalidades terminam ao ver-se convidado por dois homens a segui-los ao camarim. No caminho, deduzia ter sido um escolhido da platéia para criticar a peça, mas, antes que tivesse a real consciência do que ocorria, via que lhe metiam uma peruca na cabeça e óculos no rosto; disseram-lhe, também, que no próximo ato, seu papel seria de John Howell e, a partir de então, ele teria que representar.
Conto interessantíssimo em que um personagem é “seqüestrado” e se vê obrigado a se transformar em um ator, Instruções a John Howell inicia-se com uma frase de narração ambígua (“Pensando bem — na rua, no trem, atravessando campos — tudo isso teria parecido absurdo, mas um teatro não é mais do que um pacto com o absurdo, seu exercício eficaz e luxuoso.”) e, juntamente com o princípio rápido para cair no ambiente do teatro, se agiganta lentamente com o decorrer do futuro de Rice no palco, intimidado por olhares ameaçadores detrás das cortinas. Diferentemente dos outros contos, esta obra tem a característica da narração começar com o final da estória contada e, levando em conta tal peculiaridade, incrivelmente leva a curiosidade do leitor a se aguçar mais e o instiga a perguntar o que acontecerá e, igualmente, por que aconteceu.
Final estimulante que leva às mais variadas interpretações, Instruções a John Howell termina com um aroma das maiores lembranças das peças curtas de Poe, mestre do conto moderno. Há ainda de se considerar, de forma importante, a duplicidade, a loucura e insensatez, o aparente e o genuíno, as pontes e as ruas...
Todos os fogos o fogo
A estrutura desta obra é singular neste conjunto, assim como Senhorita Cora também tem o seu grande particularismo. O relato integral da obra se constrói, basicamente, de duas estórias narradas que se cruzam, atravessam e se encontram, embora situadas em tempos longínquos e em espaços distantes. Conquanto ambas as tramas possam ser inseridas num contexto realista, o conto se integra no tipo fantástico, visto a impossibilidade da simultaneidade das estórias no ponto de vista espaço-temporal.
Em uma arena da época da Roma Imperial, Marco, um gladiador, espera pelo seu adversário núbio sob os olhares vingativos do procônsul e sob os imparciais (outrora ou não ainda desejados) de sua esposa Irene. Na outra estória, em um espaço urbano, as formações amorosas decaem em um triângulo amoroso: Jeanne, traída, liga para Roland e compreende através do telefonema a rejeição com uma grande indiferença por parte dele e um tempo presente insuportável para si. Sofia era, já então, a sua nova amante.
O notável da narrativa total está no “andar” de como ambas as estórias se cruzam. No começo, soa-se bastante delimitado, pois cada parágrafo pertence a um tema, sendo a do gladiador a começar. No entanto, a partir do quinto parágrafo, inicia-se um atravessamento entre as frases dentro do mesmo parágrafo:
“‘Ah’, diz Roland acendendo um fósforo. Jeanne ouve tranquilamente o ruído, é como se visse o rosto de Roland enquanto aspira a fumaça, encostando-se um pouco para trás, com os olhos semicerrados. Um rio de malhas brilhantes parece pular das mãos das mãos do gigante preto e Marco tem o tempo exato para esquivar o corpo à rede.” (p. 162)
A justaposição tende a aumentar, assim como um fio condutor para as duas tramas prevalece como tema. A amálgama dos enredos se faz bastante pertinente em Todos os fogos o fogo para relacionar o título à obra, e tornam-se mais atrativas as estórias paralelas pela forma na qual Cortázar as fazem unir como assunto único, como um fogo único, somente.
O outro céu
O outro céu, conto que fecha o livro, confronta, assim como em Todos os fogos o fogo, a coerência do tempo e do espaço — com a diferença de tudo decorrer com um personagem central. Não de forma tão evidente, é verdade, mas tal conjuntura engrandece mais ainda o lirismo da narrativa (em primeira pessoa) do personagem a percorrer e se situar nas capitais da Argentina e da França, pátrias em que Cortázar nunca pôde, singularmente, ser sentimentalmente confinado.
Um espaço, porventura, pode ser imaginário. Não é, no entanto, essencial e importante, descobrir em qual local a fantasia prevalece. Um ponto interessante da obra a se observar está na descrição da carência de valores dos seus personagens; no humano triste, tímido e confuso; de uma vida fácil, sem esforços e sem ideais para se lutar. O belíssimo excerto destacado na contracapa do livro demonstra a mãe do narrador a se incomodar pela ausência do filho nas passagens do dia, mas se distrai do aborrecimento quando ele lhe presenteia com regalias:
“Minha mãe sempre percebe quando não dormi em casa, e embora naturalmente não fale nada, pois seria absurdo se falasse, por um ou dois dias me olha entre ofendida e hesitante. Sei muito bem que jamais lhe ocorreria contar para Irma, mas de qualquer forma me aborrece a persistência de um direito materno que já não se justifica, e sobretudo que seja eu quem deve aparecer, no fim, com uma caixa de bombons ou uma planta para o pátio, e que o presente simbolize de forma muito precisa e subentendida o fim da ofensa, o retorno à vida diária do filho que ainda mora na casa da mãe.” (p. 181)
A estória se desenrola como vários soares de nostalgias, de algo já há muito perdido, e semelhantes idéias desempenham uma atmosfera depressiva rondando cada frase, cada discussão interna do personagem. As mudanças do espaço e tempo repercutem nas dúvidas do narrador em situar suas “recordações” (ou ainda suas imaginações), como em obstáculos de contratempo e contradição: “houve algumas semanas”, “acho que tinha prometido”, “foi realmente na época da ilha?”. É através de passagens cobertas na galeria de Buenos Aires que se adentra numa outra época de Paris. É nesta existência francesa que se encontram Josiane (mulher cujo aspecto jamais poderia ser revelado à sua noiva Irma), Albert e Kiki para conversar, bares para se ficar e o medo grave do assassino chamado Laurent em circulação pelo bairro. Sua outra “vida”, ao lado do seu emprego na Bolsa, ao lado de sua noiva e mãe, persiste num mundo sem meta, numa aparência sem prazer. A atmosfera depressiva ali, integral e terminante, contorna mais, pois “meu único e verdadeiro descanso estava em outro lugar.”
O outro céu detêm, como benefício, as mais intrigantes e primorosas descrições, aliada a uma grande linha poética. O fluxo de consciência delineado por Cortázar coopera num jogo de confusão de lugar e movimento, ajuda a ligar Buenos Aires a Paris, Paris a Buenos Aires; demonstra duas vidas integralmente diferentes, duas possibilidades de perspectiva e, principalmente, dois céus para se abrigar.
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Cortázar, no documentário de Tristan Bauer, comentou sobre os diferentes aspectos que lhe tomavam quando andava por Buenos Aires e Paris à noite. Lá, no gélido anoitecer, estão suas galerias na “Paris absolutamente mágica e misteriosa” e por onde se atravessa e encontram os firmamentos cortazarianos; muito provavelmente, são as galerias onde há um de vários e belíssimos céus acolhedores deste grande livro, onde se estagna em um congestionamento, onde se sofre no calor da selva e onde também se encena sob olhares carregados. No final, há várias trilhas fantástivas e há sempre uma galeria de Cortázar para se estabelecer, provisoriamente ou definitivamente...
Estou fazendo um trabalho acadêmico, e achei o conto "O outro céu" extremamente difícil. Fui recorrer a artigos na internet, mas nenhum site existe a explicação deste, a não ser o seu. Por isso, parabéns, o texto está perfeito.
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