
A única criatura capaz da arte é o ser humano. E somente a arte é capaz de tratar do ser humano de forma irrestrita, de fazer uma circunspecção total do que é o ser humano. Assim, sempre foi de grande interesse artístico o tratamento do humano, o entendimento de suas formas e de sua natureza, a construção e a desconstrução de sua identidade e também a análise das relações que o homem estabelece. Nesse contexto, a pintura renascentista retoma a busca da beleza, da perfeição e da exatidão de traçados anatômicos do corpo humano, algo que tanto se fazia, por questões filosóficas, na Antiguidade Clássica. A pintura do Renascimento mantém as questões religiosas como um grande cerne temático, mas o homem, sempre representado de forma muito cuidadosa, em todas as suas formas, passa a ser uma expressão do engenho divino, não uma mera criatura. Na pintura do Renascimento, Deus e o homem parecem estar imanados, o homem como a expressão mais viva de Deus. A questão da simetria dos corpos e do uso de cores e de luzes que copiavam fielmente a realidade mostra a preocupação dos artistas renascentistas com a beleza inerente à anatomia humana. Essa iluminação mais natural não é observada, por exemplo, na pintura barroca, em que a iluminação é artificial e focada na cena retratada, a qual utiliza as assimetrias e os contrastes.
Não é de se admirar que a pintura renascentista se aproximasse de um verdadeiro enlace entre a arte e a ciência, uma servindo aos intentos da outra e mostrando a impossibilidade de se estar exclusivamente ao alcance da ciência, mas não ao alcance da arte. Alguns dos grandes nomes da pintura renascentista italiana são Masaccio, Sandro Boticelli, Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael Sanzio. Quanto ao Renascimento que se praticou nos Países Baixos, seus representantes empreenderam algumas importantes diferenças estéticas em relação ao Renascimento italiano. Os pintores holandeses e flamengos usaram bastante também da câmara escura, em vez de se preocuparem com o rigor geométrico das paisagens e ambientações. Foram também os primeiros artistas a usar o óleo em suas telas. Há também no Renascimento dos Países Baixos, alguns grandes mestres da pintura, a exemplo de Jan van Eyck, Pieter Bruegel e Rogier van der Weyden.
Vou tratar aqui de três pinturas do Renascimento italiano, pintadas por três grandes autores. O primeiro deles é Sandro Botticelli, que nasceu em Florença em 1º de março de 1445. Botticelli abordava temas religiosos e míticos em sua obra, retomando inclusive as figuras e os personagens caros à Antiguidade greco-romana. Aos 25 anos, esse autor já possuía um ateliê próprio e já produzia obras com grande maturidade. Chegou a pintar também retratos de grandes personalidades da cultura italiana e também de integrantes da burguesia e nobreza de seu país, como príncipes e princesas. Sua obra é marcada essencialmente pelo uso de cores vivas e quentes e pelo realismo de formas e dimensões. Botticelli é um representante do primeiro momento do Renascimento italiano, embora suas últimas obras tendam à estética do Renascimento tardio, com suas pinturas mais imponentes. Algumas de suas grandes obras, verdadeiramente imortais e emblemáticas, são “A Primavera”, “ O Nascimento de Vênus”, “Virgem do Magnificat” e “A Calúnia de Apeles”. Produziu também alguns afrescos para a decoração da Capela Sistina, a exemplo de “As Provações de Moisés” e “A Tentação de Cristo”, na época em que trabalhou para o Vaticano. Sandro Botticelli morreu em 17 de maio de 1510. A obra que escolhi para a postagem se chama “Madona e a Criança com Oito Anjos”.
Veja aqui a tela "Madona e a Criança com Oito Anjos"
O segundo artista que selecionei para a postagem é Giovanni Antonio Boltraffio, pintor italiano nascido em 1466 na cidade de Milão. Seu talento só veio a aflorar realmente quando ele começou a trabalhar junto a Leonardo da Vinci, tornando-se um grande admirador de sua obra e um de seus mais importantes discípulos. Pertencente à aristocracia milanesa, Boltraffio manteve a temática religiosa em suas obras, mas também dedicou-se à pintura de retratos, inclusive de um auto-retrato. Sua técnica se assemelha muito à de da Vinci, se valendo inclusive do sfumato (que significa “misturado”, “esfumaçado”, em italiano), técnica que consiste no emprego de sucessivas camadas de cor, com intenção de dar uma impressão mais fiel de volume e de profundidade. O sfumato foi criado por Leonardo da Vinci e pode ser classicamente encontrado em sua “Mona Lisa”, em que a transição das cores para a sombra é sempre gradativa, nunca abrupta. As grandes obras de Boltraffio são “A Ressurreição” e uma “A Virgem e a Criança”, de 1495, concebida bem ao estilo de seu mestre. Giovanni Antonio Boltraffio morreu no ano de 1516. A peça de sua autoria que escolhi para o post é outra “A Virgem e a Criança”, não a de 1495, mas também uma obra interessante.
Veja aqui a tela "A Virgem e a Criança"
O terceiro autor é Rafael Sanzio, um dos mestres máximos do Renascimento italiano tardio. Rafael nasceu em 6 de abril de 1483 na cidade de Urbino e teve um pai que sempre o incentivou à pintura. Foi um notório seguidor de Perugino, absorvendo várias de suas idéias e muito de seu estilo quando foi seu assistente, e também das inovações de Leonardo da Vinci, quando se mudou para a cidade de Florença, um grande pólo da efervescência artística italiana. Com Pietro Perugino, Rafael Sanzio dominou a técnica do afresco (ou pintura mural) e produziu a primeira de suas grandes obras – “O Casamento da Virgem”, em que o cuidado com as proporções das figuras e a suavidade das formas quase se confundem ao estilo de Perugino. A influência do Renascimento de Florença, especialmente o de da Vinci, moveu Rafael a usar as inovações que ali encontrou, como a técnica do sfumato e as dicotomias com teor simbólico entre o claro e o escuro. A devoção à anatomia humana e a fidelidade de sua representação, Rafael Sanzio acabou por absorver de Michelangelo. Realizou ainda alguns afrescos para o Vaticano, como “Disputa” e “A Escola de Atenas”, que sumarizam duas temáticas tão comuns durante o Renascimento - a religião e a Antiguidade Clássica. A última de suas pintura se chama “Transfiguração” e já prenunciava um novo pensamento artístico, mais turbulento, conflituoso e antitético – a arte barroca. Rafael Sanzio morreu em 6 de abril de 1520 (no dia de seu aniversário, tal como o inglês William Shakespeare, o que revestiu de mística a morte de ambos). A obra de Rafael que escolhi se chama “Madona de Granduca”.
Veja aqui a tela "Madona de Granduca"
Analisando as três obras já mostradas, percebemos alguns traços comuns, como o cuidado com as formas e proporções do corpo humano. A obra de Sanzio é mais avançada dentro do Renascimento e data da época em que ele chegou a Florença, sendo já claro o uso do sfumato de da Vinci. Entretanto, destaco a criteriosa observação e representação que os três artistas fazem das figuras humanas. A Madona (termo designado para a figura de Maria com o menino Jesus nas artes plásticas) e os rostos dos oito anjos são representados com elevado detalhamento e exatidão na obra de Botticelli. O mesmo podemos dizer da Virgem de Boltraffio, sendo notável o cuidado com a ambientação que ele e Botticelli empreenderam. Sanzio também dá destaque aos contornos do corpo humano, mas foca a cena em sua Madona, dando-lhe a precisão de volume e de luz a que se presta o sfumato. Nas três telas, observem como a anatomia humana é valorizada, nos cabelos, nas feições, nas articulações e no traçado dos membros. Os esforços de representação da beleza humana são incríveis e exigiam um talento incomum de seus artistas.
Nesse ponto, vou mudar um pouco os rumos finais do post para mostrar um detalhe comum às três obras e que só descobri recentemente. Descobri e fiquei admirado que esses pintores fossem tão perspicazes observadores a ponto de adiantar em séculos a descoberta de um fenômeno fisiológico (normal) nas crianças. Essas pinturas datam do fim do século XV e primeiros anos do século XVI. Um importante médico, em 1896, quatro séculos depois, descreveu um sinal que era patológico nos humanos acima de 2 anos, mas que ocorria normalmente nas crianças abaixo dessa idade. Esse sinal era a extensão do hálux (extensão do primeiro dedo do pé), quando a planta do pé era tocada. O médico se chamava Babinski e o sinal ganhou o seu nome, se tornando o mais famoso da neurologia. Como expliquei, o sinal de Babinski é fisiológico nos bebês, mas indica doença neurológica (que lesa as chamadas "vias piramidais"), se encontrado a partir dos 2 anos de idade. Voltando às três pinturas, vemos o sinal de Babinski nas três representações do menino Jesus, indicando que os pintores conheciam bem esse fenômeno nas crianças, embora não soubessem o seu significado. O menino Jesus de Botticelli exibe o sinal de Babinski no pé direito, que toca com a planta o manto de Maria. O de Boltraffio apresenta o sinal no pé esquerdo, cuja planta é afagada pela mãe. Rafael Sanzio representa o sinal no menino Jesus que também toca o tecido, mas com a planta do pé esquerdo. Citei somente três pinturas, mas há outras telas renascentistas que também representam o sinal.
Esse é um detalhe das pinturas do Renascimento que poucas pessoas conhecem, mas que era representado por vários artistas. Como disse no início do post, na pintura renascentista, muitas vezes a ciência, ainda que rudimentar, servia à arte. E isso é fascinante. A imagem que postei no início é a famosíssima cena “A Criação de Adão”, que Michelangelo pintou no teto da Capela Sistina. Recentemente, no Journal of American Medical Association, cogitou-se a possibilidade de os conhecimentos anatômicos que Michelangelo adquiriu em suas dissecações terem influenciado sobre essa e outras de suas obras. Em “A Criação de Adão”, Deus e seus anjos estão apoiados em um manto que descreve exatamente a forma de um cérebro humano. As pernas de Deus simbolizam a formação da medula espinhal e podemos ver ainda os contornos do lobo frontal e do cerebelo no manto. Portanto, é realmente provável que o fascínio de Michelangelo pela anatomia humana nos tenha guardado alguns segredos em suas obras, assim como Botticelli, Boltraffio e Sanzio guardaram o seu. Segredos que só a arte pode guardar e só o tempo da ciência pode revelar.
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