9 de março de 2011

O embrião de uma música de todos

Quando o compositor tcheco Antonin Dvořák desembarcou no porto de Nova York para lecionar no Conservatório Nacional, foi logo apresentado à música afro-americana. O século XIX dava seus últimos suspiros, e os Estados Unidos, apesar de terem abolido a escravidão há três décadas então, viviam um período em que o racismo fazia parte do dia-a-dia de toda a sociedade, sendo a segregação social apoiada por lei (esta só chegou ao fim, teoricamente, com a Lei dos Direitos Civis, em 1964). Durante essa época, em muitas das grandes cidades, os negros norte-americanos que não tinham boas condições socioeconômicas eram confinados em pequenos, médios e grandes guetos, dentro dos quais exerciam suas atividades culturais e religiosas. De lá saía a música que encantou Dvořák na década de 1890. Nela, o compositor identificou a chave para o futuro musical do país. O mestre tcheco defendia que todo grande compositor poderia - e deveria - buscar sua inspiração nas canções da população comum. A partir delas, seria possível compor uma música arrojada, refinada, assumindo qualquer caráter que se desejasse. Em um período em que os negros eram, de todas as formas, excluídos da sociedade, o acolhimento de sua música por Dvořák foi algo notável. Pela primeira vez, um personagem influente levou aos norte-americanos a ideia de que deveriam ver com novos olhos a cultura negra. No entanto, a música negra não seguiu exatamente os rumos que o compositor havia visualizado.

O público norte-americano, na virada do século, mostrava-se relativamente apático diante das novidades nacionais que lhes eram apresentadas nas salas de concerto. Alguns compositores (brancos, vale ressaltar) obtiveram bom reconhecimento, como Charles Ives e Edgard Varèse. Porém, o que fazia sucesso entre a população de classe média e alta, consumidora da música de concerto, era Beethoven, Puccini, Verdi. Dentro do país, um fenômeno austríaco chamado Gustav Mahler arrebatava multidões em Nova York. Em outras palavras, a música erudita que era aceita pela sociedade estadunidense era, em sua quase totalidade, importada, não havendo espaço suficiente para os compositores brancos nativos nos programas dos grandes teatros.

Se os compositores brancos encontravam dificuldades em exibir sua obra ao grande público, tal dificuldade convertia-se em uma impossibilidade quando se tratava de compositores negros. Algumas instituições de ensino tinham suas portas abertas a eles. Dessa forma, muitos jovens oriundos dos guetos americanos e da classe média negra viram nas faculdades uma chance de garantir uma boa formação, um bom trabalho e, assim, ter melhores condições de lutar por melhores qualidades de vida para a população segregada. Will Marion Cook, James Reese, Ethel Waters, entre vários outros, mostraram-se excelentes instrumentistas e talentosos compositores, na oportunidade que tiveram de frequentar a educação musical clássica. No entanto, uma vez concluídos seus estudos, viam-se diante da muralha do preconceito racial. As portas dos teatros encontravam-se fechadas e esses jovens compositores, que não conseguiam enxergar, então, como poderiam expressar sua arte, seus ideais e suas angústias diante do mundo. O grande sonho de Dvořák foi, assim, gradualmente abandonado, à medida em que os novos compositores negros, frustrados em sua tentativa de obter algum sucesso, voltavam-se novamente para dentro dos guetos, abraçando a música que havia atravessado o Atlântico nos navios negreiros. Porém, esses jovens tinham agora uma educação musical erudita de qualidade, haviam aprendido técnicas clássicas de composição e, consequentemente, puderam mesclá-las à música afro-americana, aliadas às tendências modernistas que surgiam no panorama musical - dissonâncias, menor rigidez métrica, acentuações irregulares (um perfeito exemplo para tais inovações no início do século é o balé A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky). Surgia, assim, um novo estilo popular, dotado de um alto refinamento clássico, mas sem largar as raízes africanas. Estava ali o embrião do jazz. Óperas com esse novo caráter foram escritas, assim como musicais para a Broadway, porém não foram aceitas, em sua quase totalidade. As poucas exceções apresentavam, em uma primeira leitura, a figura do habitante dos guetos exposta ao ridículo, porém continham fortes críticas à postura racista da sociedade. Todavia, tais críticas raramente eram percebidas pelo público, que seguia encarando essas obras como comédias debochadas.

A nova música dos negros norte-americanos foi também abraçada pelos artistas judeus residentes no país. Acredita-se que, exilados e perseguidos na Europa tomada pelo antissemitismo, viram no jazz uma angústia e um desejo de libertação que também carregavam consigo, diante da exclusão que sofreram no Velho continente, desde os tempos da Bélle Époque. Graças a esses artistas, o público branco americano passou a ter maior contato com o jazz. Não encontraram grandes barreiras na sociedade para exibir sua música e, assim, compuseram boa parte do que foi aceito pelo grande público, introduzindo o jazz no cotidiano do cidadão de classe média e alta estadunidense.










Jacob Gershowitz cresceu no Lower East Side de Manhattan, um bairro que simbolizava a fusão de culturas. Lá, negros, asiáticos, eslavos, europeus se misturavam à classe média local. O jovem garoto de origem judaica teve em sua infância seus primeiros contatos com a obra de Dvořák, já com marcas características da música afro-americana. A partir daí, decidiu iniciar seus estudos musicais, sendo apresentado à obra de Debussy, Schoenberg e Ravel. Ainda na juventude, conseguiu o posto de pianista em algumas produções da Broadway. O novo músico em formação, que assinava George Gershwin, iniciou então a compor música popular, influenciado inicialmente pelo meio em que trabalhava, e posteriormente pelo próprio Lower East Side em que vivia. Dessa forma, foi abraçando gradualmente o jazz nova-iorquino. Gershwin foi especialmente feliz como compositor. Algumas de suas obras, como a Rhapsody in Blue, An American in Paris, The Man I Love e outros atingiram sucesso absoluto entre o grande público.

Durante muitos anos, Gershwin planejou a composição de uma ópera. O incentivo necessário veio no início da década de 1930, quando Otto Kahn, presidente do conselho do Metropolitan Opera, que sempre havia apoiado a difusão do jazz, lhe propôs que compusesse uma "grande ópera-jazz" para seu teatro. Nasceu daí uma das mais importantes e influentes obras da música erudita do século XX e também das primeiras décadas do jazz. Gershwin adaptou para o teatro o romance Porgy, de DeBose Heyward. Tratava-se da história de amor entre Porgy, um mendigo aleijado dotado de uma perseverança incomum, e Bess, alvo do interesse de outros homens. O enredo se desenvolve em um ambiente típico do dia-a-dia dos negros norte-americanos naquela época de segregação - tráfico de drogas, álcool, miséria, mesmo a própria linguagem coloquial. Porém, as inovações não se restringem apenas ao que diz respeito ao enredo: musicalmente, Porgy and Bess marca uma liberdade rara ao intérprete. A partitura dá enorme abertura à improvisação (uma das características mais importantes do jazz); apresenta caracteres típicos da música popular da Broadway coexistindo com técnicas de composição do refinamento da formação erudita do compositor e, sobretudo, alterna passagens de relativa simplicidade harmônica, melódica, rítmica, com trechos de complexidade consideravelmente superior, herança da música moderna.

Uma discussão que até hoje se arrasta acerca de Porgy and Bess gira em torno de sua classificação. Há quem defenda que a peça de Gershwin seja um musical, diante da forte presença da música popular; há quem afirme que se trata de uma ópera, devido às técnicas de composição utilizadas oriundas da educação formal do compositor, e mesmo da própria finalidade da peça. Contudo, há outras conclusões mais importantes a se chegar a partir da dualidade entre o simples e o complexo, o popular e o erudito na obra de Gershwin, do que a simples classificação de Porgy and Bess. Essa dualidade está presente ao longo de toda a obra do compositor (especialmente em Porgy), e sempre a simplicidade, o popular, se mostra predominante ao final. Pode-se afirmar que, em Gershwin, isso representa a valorização da cultura das massas, a vitória dos negros oprimidos sobre a sociedade preconceituosa. O desejo de libertação que compartilhava com eles. Coincidência ou não, foi Gershwin um dos compositores que melhor foram aceitos pelo público no início do século, e efetivamente levou a música dos negros ao dia-a-dia das elites norte-americanas.







Porgy and Bess foi escrita originalmente para orquestra, coro e cantores solistas, tal qual uma ópera. Recentemente, foi feita uma produção cinematográfica da peça, com a Filarmônica de Londres, sob a regência de Sir Simon Rattle. Aqui, a clássica Summertime, dessa montagem, cantada por Harolyn Blackwell:





Além da versão original de Gershwin, dezenas de arranjos foram feitos posteriormente por outros artistas, sendo a maioria para grupos de jazz.

Uma dos mais importantes registros é o de Ella Fitzgerald e Louis Armstrong. Segue a canção I Got Plenty o' Nuttin, do álbum gravado pelas duas lendas do jazz norte-americano:




No Brasil, o grupo Nouvelle Cuisine, ao lado de Marisa Monte e Carlos Fernando Nogueira, possui uma celebrada gravação da canção Bess, You Is My Woman Now:



Igualmente admirados são os arranjos de Porgy and Bess executados por Nina Simone, como o de I Loves You, Porgy:

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