27 de março de 2011

Rosebud


Há quase 70 anos, o cinema conhecia uma de suas maiores obras-primas. Na época em que chegou aos cinemas, o longa-metragem remava contra a corrente em um cinema sem grandes ousadias. Obviamente, a ousadia do diretor foi alvo de muitas críticas negativas e muitos foram os críticos que massacraram uma produção assim tão contraventora. Fico me perguntando o que imortaliza um filme e mantém o interesse por ele por tantas gerações de cinéfilos, ao logo de nada menos que setenta anos. Assistir a obras tão emblemáticas assim responde essa pergunta e, ao longo da postagem, explicarei o porquê. Não sei se os críticos que massacraram essa obra fundamental do cinema se perguntavam na época o mesmo que me pergunto hoje. Mas, se eles pensaram que seria um filme efêmero, enterrado em vala comum, certamente amargariam seu equívoco após esses 70 anos. Aliás, hoje mal sabemos quais são os nomes desses críticos. Seu erro os apagou da história do cinema. Mas o nome do filme está gravado, há muito já indelével, na história da sétima arte. Estou falando de Cidadão Kane, brilhante e inovador longa-metragem de 1941. Seria um pecado um blog que inclui o cinema como tema não tratar de um dos maiores filmes já realizados no ano em que ele completa 70 anos de existência. Assumo a tarefa, então.

Para falar de Cidadão Kane, primeiramente precisamos falar de seu diretor e também ator que protagoniza Charles Foster Kane – o americano Orson Welles. Cidadão Kane foi seu primeiro longa-metragem e, na época, Welles já havia se consagrado como um talento incomum no teatro nova-iorquino. Fora também responsável por um curioso episódio, quando, ao fazer uma transmissão radiofônica intitulada “Guerra dos Mundos”, causou grande pânico na população, que pensava estar sofrendo uma invasão de um exército extraterrestre. A brincadeira de Orson Welles o tornou bastante conhecido e foi uma demonstração de que sua forma de contar uma história era capaz de efeitos fascinantes. E o seu interesse pelo cinema também não tardou a aparecer. Mas o seu interesse era o de revolucionar, de fugir da idéia de dividir enredos entre mocinhos e antagonistas. Cidadão Kane é um filme que disseca a vida, as idéias, os vícios e a derrocada de um homem, muito mais complexo que qualquer maniqueísmo facilmente digerível. Orson Welles mudou a visão de cinema em geral, da mesma forma que os filmes de ficção nunca mais foram os mesmos depois do incrível “2001: Uma Odisséia no Espaço”, do também inesquecível Stanley Kubrick. E as inovações de Welles são tanto temáticas e ideológicas como técnicas, conforme explicarei adiante.

Vamos, então, ao filme. Ele pode ter sido inspirado na vida de William Randolph Hearst, um poderoso magnata do ramo jornalístico dos EUA que, no filme, é retratado como Charles Foster Kane. O cidadão Kane é tratado como um dos mais poderosos e arrogantes homens em todo o mundo, dono de um patrimônio inestimável e capaz dos maiores artifícios para propagar seu império. No longa-metragem, Kane controla jornais em todo o território americano e faz da chamada “imprensa marrom” o combustível de seu poder. Ele consegue os melhores jornalistas de sua época para engrenar sua máquina da informação e vive dois conturbados casamentos. Em uma época em que o cinema não tinha grandes aspirações de criticar ou lançar polêmicas, Cidadão Kane surge denunciando e refletindo sobre a transgressão dos limites da imprensa. A produção de Welles mostra toda a volubilidade do homem do século XX, que vê sobrepujada a sua formação familiar e humana em favor do poder e da ambição, que convertem homens em máquinas sem nenhuma ética. Isso é claro na forma com que o menino Kane deixa sua casa e sua família para ser conduzido pelos caminhos do poder ilimitado.

O filme, logo em seu início, já exibe a máxima ostentação a que um homem pode chegar. Kane manda construir para sua segunda esposa uma mansão de valor incalculável, um lugar onde eles poderiam se refugiar da agitada vida urbana, mas que se mostra capaz de aprisionar em vez de libertar. A mansão de Xanadu pode ser vista como verdadeiros Jardins Suspensos da Babilônia, tanto por sua grandiosidade como por sua demonstração ambígua de amor e poder. E é no âmago de seu império, sozinho em sua mansão, cercado pelo luxo e pelo poder, que Charles Foster Kane morre, deixando cair de sua mão uma bola de vidro, após proferir uma última palavra: “Rosebud”. A mesma imprensa veloz e incauta que Kane ajudou a construir passa a noticiar a última palavra de Kane, ouvida somente por seus empregados e logo se opera uma busca pelo significado de “Rosebud”. Toda a vida do magnata é passada a limpo e vários personagens que conviveram com ele são consultados, desde os seus empregados e aliados à sua segunda esposa, uma cantora de ópera com talento limitado, mas que consegue se apresentar graças à influência do marido. Os quase 120 minutos da produção guardam a revelação desse inteligentíssimo enigma goethiano para uma cena final.

Para falar das inovações que Cidadão Kane trouxe ao cinema, temos de considerar que os aspectos revolucionários vão além de uma temática mais pungente. Como já disse, as inovações se desenvolveram também em campo técnico. A narrativa no filme é não linear, algo completamente incomum na época e as tomadas que as câmeras fazem têm propósitos claros, muito além de simplesmente “filmar”. Os acessos de fúria de Kane com sua esposa são representados por um ângulo de câmera que dá a impressão de que Kane é muito maior que ela. A questão do egos e das hierarquias está na própria posição que as câmeras assumem. Tecnicamente falando, esses efeitos de ângulo se denominam plongée e contra-plongée, respectivamente a filmagem acima e abaixo de um objeto ou personagem. Também se usa o campo e o contra-campo no filme. O campo é o espaço filmado pela câmera e o contra-campo é uma seqüência de tomadas que focaliza ora um ora outro personagem que dialogam. Não se pode esquecer também que um recurso cenográfico aparece em Cidadão Kane pela primeira vez na história do cinema – a inclusão do teto dos ambientes na filmagem. E ainda a sensação de ambivalência da obra, que analisa a colisão trágica do homem com o poder, está impressa na própria fotografia do filme, que sempre explora, em preto e branco, os contrastes entre o claro e o escuro.

Cidadão Kane é um filme inesquecível também por toda a análise existencial que faz acerca da vida e dos erros de um homem. Uma cena brilhante, já no final do filme, que mostra Kane diante de uma série de espelhos de sua mansão, mostra bem essa reflexão. Ali, diante dos espelhos, estão perfilados todos os Charles Foster Kane que poderiam ter existido, mas somente um é o que verdadeiramente existiu - o homem conturbado, cheio de poder e vazio de vida. E todas as imagens de Kane serão sempre o que nunca existiu e jamais existirá, por que são as escolhas que constroem um homem. Isso é bastante conclusivo no filme. O enigma existente em torno de “Rosebud” é revelado ao final da obra e representa um oásis de felicidade e pureza em um deserto de ostentação e força. A palavra “rosebud” significa “botão de rosa” e nada poderia representar melhor a inocência e a esperança em uma vida que poderia ter sido o que não foi. É nisso que consiste o lamento final do cidadão Kane. Aos que ainda não assistiram ao filme, indico que assistam a ele para descobrir o que é especificamente “Rosebud” no filme. Essa palavra é a chave do entendimento da obra.

O filme de Orson Welles é um marco na vida de qualquer amante do cinema e poder assisti-lo tantos anos depois de seu lançamento e ainda se deslumbrar por seu conteúdo ousado e tão à frente de seu tempo confirma seu status de obra essencial da sétima arte. Espero que os que já assistiram ao filme tenham gostado do que leram e que os que ainda não assistiram se sintam motivados a procurarem por ele. Cidadão Kane foi capaz de modificar o cinema como raríssimos filmes o fizeram e seu impacto nunca deixará de ser renovado.

Até o próximo post!

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