31 de janeiro de 2011

Morte e Transfiguração


Venho, dessa vez, dividir com os leitores do blog a audição de uma das obras mais lindas e impressionantes que já me chegou aos ouvidos (digo isso certo de que tenho um mundo de outras obras para conhecer dentro do infindável repertório erudito). Eu me refiro ao poema sinfônico Morte e Transfiguração (no alemão, Tod und Verklärung), de Richard Strauss. Strauss foi um dos últimos grandes representantes do tonalismo no século XX, passando a ser cultuado como um novo Wagner, embora, obviamente, o culto a Strauss não tenha chegado nem próximo do que foi a febre wagneriana. Foi ainda um ótimo orquestrador, especialmente, em minha opinião, pelo uso que faz dos metais. Um exemplo disso está em Dom Juan, em que sua escrita para quatro trompas extrai desde os mais delicados aos mais ásperos sons do instrumento.

O tom grandiloqüente que dá especialmente a seus poemas sinfônicos me conquista de uma forma que não experimento com nada que não leve a assinatura “Richard Strauss”. Eu e o Ígor já conversamos diversas vezes sobre Strauss e percebo que o compositor alemão figura tanto entre meus compositores preferidos como entre os dele. A orquestração de Richard Strauss nos conquista por ser colorida e exigir massa de sons, muitas vezes, com participação eloqüente dos metais, em contraposição às trágicas e dramáticas melodias que as cordas lançam. Poemas sinfônicos como Uma Vida de Herói, Assim Falou Zaratustra, Dom Juan e Morte e Transfiguração podem não ter todo o arrojo harmônico de sua ópera Salomè, mas são poderosíssimos por seus temas épicos e essencialmente dramáticos. Sua música, bem como a de Mahler, foi precursora da música moderna e vanguardista do século XX.

Dito isso, vamos então ao poema. Ele foi escrito em 1889, ainda no início da carreira de Richard e é baseado em um texto literário de Alexander Ritter, que descreve os últimos momentos experimentados por um doente à beira da morte. A luta contra o “mal desconhecido” (em uma visão shakespeariana de medo e aceitação dos males terrenos), a revista nostálgica à vida que se passou, a transcendência para a morte e a consumação da passagem são descritas em literatura por Alexander Ritter e em música por Richard Strauss. E assim, o poema é dividido em quatro momentos diferentes da experiência – o homem já em seu leito de morte (representado em um Largo), a luta contra o destino invencível (um Allegro molto agitato), as lembranças de toda uma vida (um Meno Mosso) e, por fim, a transfiguração, a cisão entre corpo e alma, precedendo o descanso eterno (um Moderato).

Na primeira das quatro partes, um andamento bastante vagaroso nos apresenta ao homem em seu leito de morte, em um sonho febril, mas tranqüilo, somente um preâmbulo do que virá a ser o restante do poema. Os violinos e o tímpano executam síncopes [1] longínquas, em piano, lembrando a discreta, mas ofegante e difícil respiração do enfermo. Os primeiros motivos são aqui lançados e merecem atenção, pois todo o clima dramático que a obra contém partirá dessas primeiras notas. Clarinete, fagote, oboé e flautas abrem as portas para a mente triste e temerosa do homem e uma belíssima melodia desenvolvida pelo violino responde com doçura a tudo isso, como quem traz uma palavra de paz ou um gesto de consolo ao doente. Enquanto isso, os arpejos delicados do harpista dão uma sonoridade etérea, que vai e volta, ao trecho. A primeira parte consiste numa breve viagem pela imaginação do homem em seu leito, que já parece resignado com seu destino.

A resignação é quebrada por uma nota forte e decidida do tímpano, seguida do imperioso despertar dos metais, por longas e não menos decididas notas dos violinos e pela resposta austera dos contrabaixos. Eis agora a segunda parte, um Allegro molto agitato, que se ergue como o acordar daquele que se mantinha passivo, como o abrir de olhos daquele que aguardava imóvel a derradeira visita de seu destino. Trata-se de uma passagen de luta convulsiva, de inconformismo extremo, de agitação manifesta pela presença de poderosos trombones e cordas, que são a voz revoltada e incompreendida do homem doente. E são os metais que, em suas últimas notas nesse Allegro, transitam da inconsolável e súbita raiva ao entendimento pleno de que a luta é infrutífera e resta apenas fazer uma visita à lembranças de uma vida. Reviver a vida é, por conseguinte, o último viver.

Inicia-se aqui a terceira parte e a doçura de um solo de flauta retoma a doce melodia do violino e revisita os anos de infância do homem. Os primeiros e segundos violinos são também convidados ao momento saudosista e repetem trechos da bela melodia que a flauta havia anunciado. A entrada dos metais e a execução de melodias mais vertiginosas e rápidas pelas cordas, sempre pontuadas pela sonoridade reentrante e afirmativa dos trombones, nos conduz à adolescência, fase mais conflituosa e densa. As glórias e as derrotas da vida adulta surgem em um tema maduro e que será abordado no clímax desse poema sinfônico e também no vigor das melodias (que se intercalam ao aparecimento do tema) executadas pelas madeiras e metais. Os motivos que apareceram na primeira parte, para os quais chamei tanta atenção, retornam pacificamente aqui e, após lutar contra a morte e sonhar com o passado, a mente do homem é reconduzida ao seu estado mórbido, à sua realidade final. E novamente sentimos breves síncopes de sua respiração. O fim, então, se aproxima. É chegada a hora de atravessar para o desconhecido.

Por fim, chegamos à quarta parte de Morte e Transfiguração. Tudo se desenvolve em um longo “crescendo”. Agora a dualidade corpo e espírito se resolverá numa separação entre as duas metades que, até então, sempre andaram em comunhão. Contrafagote, fagote e trompas iniciam a caminhada rumo à transfiguração e as demais madeiras logo os acompanham nessa misteriosa estrada. As cordas também participam dos últimos passos que esse homem dará e os primeiros violinos cantam tragicamente o destino que se avizinha. Essa parte é extremamente dramática e, por fim, todos os naipes parecem se unir para realizar a passagem, sob o som obstinado do tímpano e o canto de morte das cordas e metais. Mas não se trata de um canto fúnebre ou tétrico e sim de um canto de colorido orquestral, brilhante, em busca da beleza mais profunda, de fazer da morte um grande espetáculo, que consuma toda uma vida. A alma se desprende do corpo e ascende pelos ares e pelas nuvens, rumo aos destinos mais longínquos, onde o tempo e o espaço não podem ser sentidos. Após o clímax, lentamente se atingirá o repouso, a paz que agora será completa e infinita. Já em seu leito de morte, Richard Strauss se declarava convencido de que sua composição descrevia exatamente o que estava experimentando.

Tentei não me ater somente aos aspectos formais da música, mas correlacioná-los ao que é mais importante: o aspecto imaginativo e sensorial da obra. Escrevi o que cada passagem me passa e como as interpreto. Espero ter facilitado e orientado a audição de todos, a qual certamente vai lhes revelar um caminhão de coisas que aqui não foram escritas. Portanto, boa audição a todos! A imagem que escolhi para ilustrar o início da postagem é um quadro de Edvard Munch (o mesmo de “O Grito”) intitulado “No Leito da Morte”, de 1895. Assombrado toda a vida pela doença e pela morte, especialmente pela morte da irmã por tuberculose pulmonar, o pintor norueguês retrata nessa tela (somente uma de suas obras que abordam doença e morte) as emoções geradas à beira do leito de um doente. Acho interessantes as expressões que se identificam em cada rosto – diante do corpo já desvalido, vêem-se o horror, a tristeza e a fé inerentes à experiência. Por hoje, é isso! Até a próxima!

[1] Síncope: alteração rítmica inesperada, que consiste no prolongamento de um tempo fraco sobre um tempo forte do mesmo compasso ou de compassos diferentes. É muito usada nos estilos de música latina e norte-americana, como o samba, o choro e o jazz. Aqui, no poema sinfônico de R. Strauss, o propósito é outro, conforme explicado.

Sugiro a gravação de Herbert von Karajan e sua Filarmônica de Berlim (sugestão tradicional, mas que vale a pena):

Baixe aqui a gravação.

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