28 de dezembro de 2009

A ruptura com o tonalismo

A música erudita moderna e contemporânea ainda encontra sérias dificuldades em ser compreendida e apreciada pelo grande público. É óbvio que exceções existem. Os brasileiros aceitam Villa Lobos, quase unanimemente, como seu maior compositor. A música jazzística de George Gershwin é popular em qualquer lugar do globo. Os impressionistas Debussy e Ravel são presença frequente nos programas das salas de concerto.

O século XIX foi marcado por grandes mudanças na música, seja na harmonia, no caráter, na instrumentação. No começo dos anos 1800, havia um Beethoven clássico, das duas primeiras sinfonias, um Schubert de música conservadora, uniforme (o que não quer dizer que não fosse complexa). Junto com Beethoven, Carl Maria von Weber dava os primeiros passos de um romantismo ainda recatado. Cem anos depois, o panorama musical era completamente diferente. Na Europa, as óperas polêmicas e densas de Richard Wagner eram executadas incessantemente em Bayreuth. Franz Liszt escrevera a Bagatelle sans Tonalité, na qual o sistema tonal, pela primeira vez em séculos na Europa Ocidental, foi abandonado, dando lugar a novos acordes, novas dissonâncias não resolvidas. Richard Strauss, já na passagem para o século XX, passeava pelas fronteiras da tonalidade em suas óperas e poemas sinfônicos, enquanto Gustav Mahler utilizava, cada vez mais, orquestras com maiores dimensões, para atingir uma música mais densa, volumosa (sua oitava sinfonia costuma contar com mais de mil músicos no palco, entre instrumentistas e coralistas). Enquanto isso, a América também passava por uma revolução musical, principalmente com o advento do jazz neorleanense.

Essas mudanças não foram bem aceitas pelo público em sua época. Hoje, cem anos depois, é mais comum encontrar grandes apreciadores de Mahler, Strauss, Wagner, até porque o público - antes acostumado à música rigidamente metrificada seguindo as regras da harmonia clássica de Mozart e Haydn - aos poucos foi se adaptando às novas composições.

Todas as inovações na música do século XIX, principalmente no campo harmônico, abriram as portas para uma mudança ainda mais violenta que se iniciaria nos primeiros anos do século seguinte: o atonalismo, introduzido por Arnold Schoenberg, que até hoje cria polêmica entre os ouvintes. Antes de tentar compreender as razões e como se deu essa revolução na música moderna, creio que seja importante conhecer uma parte da vida do compositor, tido como "o pai do dodecafonismo".

Arnold Schoenberg nasceu na Viena de 1874, em uma família judia humilde. Parte do que aprendeu do repertório clássico foi ouvindo a uma banda militar que se apresentava em um café vienense, e seus primeiros contatos com a teoria musical se deram com a assinatura de uma enciclopédia. Com os conhecimentos adquiridos e sua leitura, Schoenberg aprendeu, autodidaticamente, a tocar piano e violoncelo. Com a morte do pai, aos quinze de idade, Arnold teve que trabalhar como bancário, para garantir seu sustento. Mas sua paixão pela música o fez tentar seguir a carreira de músico: foi regente de um coro austríaco de operários, orquestrou operetas e, por um ano, trabalhou como diretor musical de um cabaré em Berlim.

Assim como aconteceu com Mahler, as frustrações da vida pessoal de Schoenberg tiveram reflexos em sua obra. Neste, ainda são maiores os reflexos: sua esposa, Matthilde Zemlinsky, o traíra com seu professor de pintura; o povo judeu começava a ser perseguido pelo governo alemão.

O sistema tonal, segundo a visão do compositor, era já anacrônico, incoerente, diante de tantas mudanças ocorridas na composição das últimas décadas. Os novos acordes, as novas texturas, tudo abria um leque tão extenso de possibilidades de novas harmonias, leituras, expressões e conclusões, que ficar preso às regras do tonalismo havia perdido o sentido. Schoenberg, até meados de 1909, conservava resquícios de tonalidade em suas peças. A ruptura completa veio com as Cinco Peças para Orquestra, as Três Peças para Piano, e Erwartung, monodrama para soprano e orquestra. Como qualquer peça revolucionária, estas e outras foram recebidas com fortes vaias de parte do público, e efusivos aplausos de uma minoria. O público não estava (e, de certa forma, ainda hoje não está completamente) preparado para a música atonal. O compositor brasileiro Camargo Guarnieri, em carta aberta aos músicos e críticos do Brasil, chegou a dizer: Afirmo, sem medo de errar, que o dodecafonismo jamais será compreendido pelo grande público porque ele é essencialmente cerebral, anti-popular, anti-nacional e não tem nenhuma afinidade com a alma do povo. O dodecafonismo foi um sistema criado por Schoenberg, quando este viu que o atonalismo, simplesmente, poderia ser tratado com desdém por novos compositores (dessa forma, uma criança poderia martelar teclas aleatórias de um piano e, então, ter-se-ia um compositor). Nele, as doze notas da escala cromática (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si e seus respectivos bemóis/sustenidos, sem repetir notas) são tratadas igualmente, têm a mesma importância, deixando de haver um "centro de gravidade" tonal. Junto a dois de seus discípulos, Alban Berg e Anton Webern, Schoenberg formou a chamada Segunda Escola de Viena.

A declaração de Guarnieri acerca do dodecafonismo é bastante controversa. O dodecafonismo é, indiscutivelmente um grande marco na história da música contemporânea. Pode não ter um conteúdo folclórico, popular ou nacionalista, mas sua obra é de grande importância, apesar de ser de difícil compreensão por parte do grande público. Não cabe a mim discutir isso, o que pretendia aqui era explicar a importância que teve Arnold Schoenberg na música do século XX.

Para finalizar, o musicólogo Alexander Ringer defende que o atonalismo de Schoenberg pode ter sido uma forma de defender seu judaísmo. Seria um refúgio, sua "terra prometida", em que poderia esconder-se da perseguição que sofriam os judeus na Europa.

Depois de tanto escrever sobre o atonalismo, trago aqui uma peça... tonal! Verklärte Nacht (Noite Transfigurada), é um poema sinfônico de 1899, escrito para sexteto de cordas. Foi sua primeira peça de impacto, e uma das poucas que foram bem aceitas pelo público. Talvez porque não seja uma peça que fuja tanto do tonalismo. Tem uma harmonia ousada, usa e abusa dos cromatismos, mas não soa tão agressiva aos ouvidos como suas composições posteriores. Em 1917, fez um arranjo para orquestra de cordas, e o revisou em 1943. É uma peça densa, sombria, dramática, caráter que é acentuado na versão para orquestra de cordas. Schoenberg inspirou-se no poema homônimo de Richard Dehmel, que narra um encontro de um casal, no qual a mulher conta ao amante que estava grávida de outro homem. Este lhe diz que não há problema em seguirem suas vidas juntas, e que cuidaria da criança como se fosse sua legítima filha. Cada um dos cinco movimentos tentam expressar um trecho da história, se tentarmos comparar.

Eis o poema, traduzido do alemão:

Duas pessoas caminham por um desfolhado, frio bosque,
A lua marcha com eles, eles olham para ela.
A lua marcha acima dos altos carvalhos,
Nenhuma nuvem turva a luz do céu,
No qual as negras pontas dos galhos se estendem.
A voz de uma mulher diz:

Eu carrego uma criança, e não é sua,
Eu ando em pecado perto de você.
Eu cometi uma dura ofensa contra mim mesma.
Eu não acreditava mais que poderia ser feliz
E tive ainda um forte desejo
Por algo que desse sentido à minha vida: a alegria de ser mãe e seu trabalho; assim Eu me atrevi,
Assim eu deixei meu sexo
Ser tomado por um homem estranho.
Agora a vida tem sua vingança:
Agora eu conheci você, sim, você.

Ela caminha com passos desajeitados.
Ela olha para cima; a lua marcha próxima.
Seu escuro aspecto inunda-se em luz.
A voz de um homem diz:

A criança que você concebeu,
Não deve ser oprimida por sua alma,
Oh veja, como claramente o universo brilha!
Há um brilho em torno de tudo,
Você flutua comigo sobre um mar frio,
Mas um calor especial tremula
De você em mim, de mim em você.
Ele vai transfigurar a criança do estranho,
Você a transforma para mim, como se ela fosse minha;
Você trouxe o brilho para mim,
Você fez uma criança para mim mesmo.

Ele a agarra pelos seus vigorosos quadris,
Seus hálitos se beijam no vento.
Duas pessoas caminham por uma imponente, brilhante noite.



Por sinal, o amigo Marcelo Sobrinho, algum tempo atrás, comentou comigo que a Noite Transfigurada era, também, mesmo que involuntariamente, uma descrição sonora perfeita para a Noite Estrelada, de Vincent van Gogh. Historicamente, não há relação alguma entre as duas obras. Mas, na prática, ele tem toda a razão, vejam só:



A gravação que segue é da versão para orquestra de cordas de 1943, com a Filarmônica de Berlim, tendo Herbert von Karajan à sua frente.



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