10 de janeiro de 2012

Londres das Distopias


Retomando minhas postagens no blog, hoje venho tratar de duas grandes distopias escritas no século XX e ambientadas em uma Londres disforme– “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley e “1984”, de George Orwell. Ambos os autores dedicaram-se de maneira fabulosa a questionar os rumos que a humanidade daria para si mesma nos anos vindouros. Huxley escreveu sua grande obra em 1931 e Orwell, em 1948, dois anos antes de sua morte. Não pretendo com o post estabelecer uma comparação de qualidade entre as duas obras, mesmo porque são distopias com focos diferentes e com fortalezas também distintas. A meu ver, “1984” é mais densa e conquista mais enquanto obra literária, especialmente em seu final, que amadurece muito o discurso do romance. Por outro lado, as idéias que Huxley emprega em seu “Admirável Mundo Novo” são mais complexas e abrangentes, nos parecendo mais táteis. Independente de suas abordagens, são obras essencialmente sombrias e que jogam um feixe de luz sobre o ascetismo servil e crudelíssimo que construímos pouco a pouco. Umas das cenas finais de “1984”, por exemplo, é uma das coisas mais terríveis e inesquecíveis que já li. Mas não se enganem: sob nenhuma análise, Huxley passa perto da inocuidade. Acima, a tela “O Gigante Acéfalo”, de Max Ernst.

Vamos às obras. “Admirável Mundo Novo” se passa no ano de 632 d.F. (depois de Ford), em uma referência clara ao mecanicismo alienante com que os seres humanos são produzidos na obra. No romance, os seres humanos são formados em tubos de ensaio e cabe ao Estado gerenciar tal produção. Família ou pais são conceitos inimagináveis. A promiscuidade sexual é compulsória e a busca de qualquer relacionamento duradouro é considerada um ato de subversão altamente pusilânime. Mobilidade social sequer é um sonho, pois se trata de uma sociedade de castas, em que as castas Alfa, Beta, Gama, Delta e Ípsilon são produzidas industrialmente e a base dessa pirâmide social (os Ípsilons) é gerada em série para ser absolutamente inapta a qualquer atividade intelectual. Os indivíduos jamais contestam essa estratificação social inflexível, pois nos tubos de ensaio em que são gerados, os Ípsilons recebem menos substrato ao seu desenvolvimento mental. São incapazes por sua própria natureza.

Toda essa metodologia, amparada pela legitimidade científica, é chamada de método Bokanovsky. E a esse método, somam-se o condicionamento neopavloviano e a hipnopedia. O condicionamento é magistralmente exemplificado na obra, na passagem em que bebês ouvem sons assustadores ao se aproximarem de livros, constituindo futuramente uma horda de cidadãos alheios ao conhecimento e à cultura. Axiomas tacanhos são também introjetados durante o sono dos indivíduos, durantes anos a fio. E pela repetição implacável, eles se tornarão verdades inabaláveis. Eis a hipnopedia. Para suportar a desumanização em nome da estabilidade social e do progresso técnico, criou-se a droga “soma”, capaz de induzir o sono e levar a mente às aventuras mais impossíveis. Esse é o Admirável Mundo Novo, onde a arte, o conhecimento e as paixões mais nobres foram apagados para sempre.


Já a obra de Orwell, “1984”, foi a grande empreitada a que o autor se dedicou, profundamente desiludido com os rumos que o socialismo tomou, especialmente o soviético, já satirizado em “A Revolução dos Bichos”. A obra de Orwell é essencialmente política, como é o próprio autor. Ele imagina o ano de 1984 vivendo sob um socialismo totalitário, em que as liberdades individuais são reduzidas a quase nada. Teletelas estão espalhadas por toda parte e vigiam a todos. A Polícia do Pensamento se dedica a capturar os ideocriminosos (aqueles que tenham qualquer idéia contrária ao regime) e um idioma intolerante, chamado de Novilíngua e baseado na destruição de palavras, foi criado para permitir a veiculação exclusiva de idéias favoráveis ao Partido.

Só há três grandes Estados – a Oceania, a Eurásia e a Lestásia, que se mantêm sempre em guerra. Mas a guerra visa somente manter o poder de cada um dos Estados, o que no livro se chama de “estado de guerra”, um clima constantemente beligerante, tornando os indivíduos peças de um jogo de ódio ao inimigo e submissão servil ao governo, que sempre noticia vitórias em batalhas falsas. A guerra visa à paz e ao “status quo” e esse é um dos lemas do Partido – “Guerra é Paz”. Os outros são: “Escravidão é Liberdade” e “Ignorância é Força”. O chefe do partido é o Big Brother (ou “Grande Irmão”), figura que nenhum cidadão viu e cujo paradeiro todos desconhecem. O Grande Irmão é somente a centralização do poder. O medo e o estado de vigilância perene são armas do Partido e do Grande Irmão, que espalham como boatos a existência de uma organização de traidores, a Fraternidade, liderada por Goldstein. Nessa sociedade, qualquer opositor é vaporizado e seus registros são destruídos, como se nunca tivesse existido. Torna-se uma “impessoa”. A sociedade de “1984” se baseia no “duplipensar”, princípio que admite a existência de ambivalências absurdas, se esse for o ditame do Partido.


Nesses dois cenários de obscurantismo tonitruante, surgem os personagens que conspiram contra o sistema. Em Huxley, Bernard Marx e John (um “selvagem”, que é trazido de um reduto onde se vive como outrora). Em Orwell, Winston e Júlia. Seus destinos são selados quando eles tomam o caminho da oposição. Mas mais importante ainda que entendermos suas trajetórias nos respectivos romances é analisarmos a relevância dos elementos que os autores empregam. Huxley, embora cronologicamente em um futuro mais distante, consegue ser mais impactante pelo fato de identificarmos desde já algumas de suas denúncias. Os relacionamentos fugazes, o progresso técnico, a decadência da arte e da formação crítica já fazem parte da nossa realidade. No livro, pessoas se tratam pelo verbo “experimentar”. É fatídico que não verbalizamos hoje de forma muito diferente e não vemos nada de estranho nisso. O hedonismo de “Admirável Mundo Novo” não é tão diferente do nosso.

A arregimentação que conduz os habitantes do Admirável Mundo Novo aos princípios da uniformização dos costumes e da intolerância deliberada a qualquer pensamento não unânime já nos pertence. Pessoas lêem cada vez menos. Os livros artísticos ocupam cada vez mais o fundo das nossas livrarias. Nossos filmes hipervalorizam o espetáculo que acoberta a falta de idéias e tendemos a acreditar que os filmes em três dimensões são um passo gigante na trajetória da sétima arte. Isso é sugerido pelo cinema sensível de Huxley, que induz o entendimento raso pela sensibilidade primitiva, que dispensa e atrofia o pensamento. Podemos traçar ainda um elo entre o uso hiperlativo dos antidepressivos e benzodiazepínicos atuais e a ostensivamente utilizada droga “soma” do romance. Tudo nesse mundo é asséptico. A doença e a velhice foram banidas pela tecnologia e, como afirma Huxley, "hoje os velhos copulam e trabalham". E as crianças já tem sua iniciação sexual na mais tenra idade, com seus brinquedos eróticos. É impossível ler “Admirável Mundo Novo” sem sentir-se estupefato com determinadas semelhanças com o que se vive hoje, após apenas 80 anos de seu lançamento. Aí reside a grande força do livro.


George Orwell e sua mais importante obra nos parecem mais distantes. Sua previsão não é necessariamente cronológica e seria infantil vê-la dessa forma. Mas se até os regimes que pregam a distribuição de benesses se corrompem, fica inteligível sua frase mais emblemática: “Se quer uma imagem do futuro, imagine uma bota pisando sobre um rosto humano para sempre”. “1984” trata da questão da opressão de uma forma muito contundente. Indivíduos controlados, que tudo fazem para o Estado, são a pior face da opressão. Poderíamos imaginar a sociedade contemporânea não tão longe disso, dado que nosso trabalho é muitas vezes repetido, explorado e sequer pensamos em seu objetivo, como no mito de Sísifo, que rola uma pedra montanha abaixo, para depois carregá-la ao cume novamente. Além disso, se até o que nos é mais particular, ou seja, o nosso pensamento, é violável, então não nos resta nenhuma chance de salvação.

Uma cena que me marcou tremendamente enquanto leitor é aquela, próximo ao final da obra, em que o torturador chega ao prisioneiro (encarcerado nos confins do Ministério do Amor, que se encarrega da tortura, novamente aludindo ao “duplipensar”) e declara que ele é o último representante da humanidade. Em seguida, ele pede ao prisioneiro que se olhe no espelho e veja o último resquício da humanidade e o reflexo acusa um homem esquálido, gemente, a sangrar, com cicatrizes a lhe cobrir o corpo. Orwell é absolutamente brilhante nessa passagem, construindo imageticamente a metáfora do fim da humanidade enquanto indivíduos que pensam e sentem e não somente se submetem. No romance, a falsificação de fatos históricos é amplamente utilizada para facilitar a dominação. Os noticiários da guerra e os dados do Partido sobre índices sociais são constantemente falsificados, de forma a provocar a histeria coletiva de que tudo progride. A notícia recente de que o governo chileno decidiu trocar o termo “ditadura” por “regime” ao referir-se ao governo de Augusto Pinochet é um exemplo que me obriga a uma pergunta retórica: será a falsificação da História um mero devaneio orwelliano?


No cômpito geral, destaco que a importância de se ler Orwell e Huxley não é a de nos sentirmos tentados a confirmar todas as suas hipóteses futurísticas. Huxley, por exemplo, jamais previra o desastre atômico que pôs fim à Segunda Guerra Mundial. Muito mais do que isso, ler tais distopias é importante para despertar um juízo crítico sobre a própria caminhada da nossa história e sobre o que construímos para gerações futuras. Nesse sentido, essas obras são extremamente válidas, mais para desferirmos perguntas que para acharmos respostas prontas e inatas. Huxley e Orwell nos tornam mais conscientes e cautelosos, para que a vida talvez não seja “uma mera história narrada por um tolo, cheia de som e fúria, significando nada”.

30 de dezembro de 2011

Num caldeirão de ideologias, um sonho popular

A derrota da Tríplice Aliança na Primeira Guerra Mundial inaugurou uma fase inédita na Alemanha. A recém-proclamada República de Weimar instalou, pela primeira vez em uma Alemanha unificada, um regime democrático. No entanto, a república foi instalada em um momento em que ainda se tinha fresca na memória dos alemães uma nítida e saudosa recordação de um império promissor, que outrora havia almejado ser a grande potência de seu tempo e que, do alto de sua vertiginosa ascenção política e industrial, havia pouco sofrera a maior humilhação de sua história ao perder a Primeira Guerra à Tríplice Entente. Seria de se esperar, portanto, que Weimar se mostrasse uma república sem uma população de republicanismo convicto. E, de fato, o que havia em Weimar era um mosaico inebriante de tendências políticas e culturais. Após o fracasso na guerra, era possível andar pelas ruas de Berlim e observar comunistas, fascistas, anarquistas, socialdemocratas, dadaístas; cada qual exercendo sobre seus simpatizantes uma influência exponencialmente superior à que o próprio governo exercia. Os opostos coexistiam no mesmo espaço, criando em torno da Alemanha dos anos 20 um imenso leque de possibilidades, expectativas, visões de mundo e, consequência de tudo isso, manifestações artísticas. Não é de se espantar que os primeiros anos de Weimar foram marcados por uma série de golpes, contragolpes, assassinatos políticos, conspirações. O pesquisador austríaco naturalizado brasileiro Otto Maria Carpeaux, certa vez, colocou com propriedade: "para novas angústias, novas expressões". É sob essa ótica que se deve tentar compreender as infinitas novas tendências artísticas que surgem ao longo do tempo - especialmente no caldeirão de angústias que era a Alemanha do pós-guerra.

Ao mesmo tempo em que disputavam espaço em Weimar todas as possíveis ideologias, toda a Europa começava a receber a mídia de massa, tendo no rádio sua principal arma. Com ela, o jazz, o frenesi industrial, os loucos anos 20 conquistavam, mais e mais, seu lugar no Velho Continente. Berlim consolidava os ares de uma metrópole moderna, de cujo dia-a-dia faziam parte a fumaça dos automóveis, as chaminés das indústrias, as ferrovias, os cafés, cabarés, empresários, operários, mendigos. Num período de inédita democracia, era possível o fortalecimento de ideias progressistas entre a classe trabalhadora; o avanço de uma esquerda alemã foi notável. E, junto a isso, derrubava-se entre os artistas o hábito de trabalhar para os grupos que estivessem no poder. Pelo contrário, pela primeira vez houve espaço também para a contestação, diante de uma inflação que parecia incontrolável, crescente desemprego e problemas sociais graves, frutos da impressão descontrolada de papel-moeda sem lastro pelo governo de Weimar, que acumulava dívidas e mais dívidas após a guerra. Thomas Mann chegou a declarar que os alemães "aprenderam a enxergar a vida como uma louca aventura, cujo resultado não dependia de seus próprios esforços, mas de forças sinistras e misteriosas", o que, de certo modo, explica o pessimismo que reinou no país. Intelectuais emergiram na cena artística berlinense com o intuito de falar às camadas populares, pondo-as no centro da produção artística e, dessa forma, no centro de uma nova percepção de sociedade. Paul Hindemith, Berthold Brecht, Hans Eisler, Ernst Krenek, Elizabeth Hauptmann, Kurt Weill, Lotte Lenya entre outros despontavam como novos artistas se opunham ao discurso Schoenberguiano de que a arte não deveria buscar a identificação popular, e sim um puro retrato da visão de quem a produz. Dava-se início, na República de Weimar, a uma arte voltada para as massas, em que o homem comum era o objeto principal da manifestação - rejeitava-se a dissonância de Schoenberg em nome de algo que também valorizasse o tradicional.

No campo da música, a chamada Zeitoper (ópera do momento), em que se exploravam temas populares; seja na estrutura musical ao mesclar o clássico ao jazz, ao ländler e a outros estilos de maior aceitação do público; seja nos temas explorados, com situações do dia-a-dia, envolvendo proletários, mendigos, prostitutas, abandonando os temas aristocráticos da ópera Verdiana. O cidadão teria acesso a uma arte que lhe servia e representava. Porém foi com Kurt Weill que, talvez, se tenha elevado a busca por um apelo popular ao seu máximo expoente. Weill propôs a ideia do Gestus, gesto musical, o momento em que texto verbal, fala, encenação e música convergeriam, juntos, no mesmo sentido. A ideia que se quer transmitir seria expressa em todos os aspectos. E, nessa busca, Weill se aliou ao dramaurgo Berthold Brecht, junto do qual deixou algumas das mais importantes obras do período entre-guerras, entre as maiores expressões de um curto sonho democrático.

Brecht atraiu Weill a uma esquerda mais agressiva, provocativa. A partir de sua união, surgiu Mahagonny Songspiel, em que se tenta apropriar -se da linguagem pop norte-americana que invadia Berlim. Como seria de se imaginar, sucesso absoluto de público. Empolgados com o sucesso de seu primeiro lançamento, Brecht e Weill dedicaram-se a um projeto mais ambicioso, que culminaria em uma ópera popular de maiores dimensões. Aqui, pode-se ver Lotte Lenya, esposa de Kurt Weill, cantando Alabama Song, mais conhecido trecho de Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, na qual cidadãos constroem uma cidade em que tudo é possível, tudo é permitido, desde que e tenha ouro. Uma ácida sátira ao sistema capitalista ao qual Brecht se opunha ardentemente.




Aqui, Wie man Sich Bettet, outra canção de Ascenção e Queda da Cidade de Mahagonny, em que fica explícita a influência do jazz norte-americano:





Não obstante, foi A Ópera dos Três Vinténs o trabalho mais bem sucedido de Brecht e Weill. Nele, se explora como nunca o anti-herói, a crueldade, a sujeira e a corrupção. Seu protagonista, Macheath, encarna a figura do serial-killer, o assassino frio, cruel, o típico gênio do crime. O Macheath de Brecht tenta personificar o que há de abominável nas cidades de seu tempo, como fruto do sistema - uma figura cativante e sedutora ao espectador, sobretudo. Brecht explora a imagem de um criminoso implacável em Macheath, que salta da condenação à forca ao título de barão. Pode-se entender o criminoso de Brecht (não apenas o da Ópera dos Três Vinténs) como uma paródia da impune corrupção política alemã de seu tempo. Logo na abertura da peça, é apresentada ao público sua intenção:"Vocês ouvirão agora uma ópera. Porque ela foi planeada de forma tão pomposa, como só um mendigo poderia sonhar, e porque ela deveria ser tão barata, que até os mendigos possam pagar, ela se chama A Ópera dos Três Vinténs".

Há uma gravação antiga da canção Die Moritat von Mackie Messer, cartão de visitas dos três vinténs - trecho que, no Brasil, foi imortalizado por Chico Buarque, ao escolhê-lo para construir sua paródia na Ópera do Malandro (na verdade, inspirada em toda a pela de Brecht e Weill) - cantada pelo próprio Berthold Brecht:



Apesar de sua contribuição incontestável para a música de Weimar, o público é quase unânime ao preferir outras interpretações à do dramaturgo da canção de sua própria peça. Aqui, Louis Armstrong canta a versão em inglês da mesma canção, Mack the Knife:




Uma pesquisa nem tão detalhada no youtube resultará em outras notáveis interpretações de Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Bobby Darrin, Sting.


Mais do estilo de tendências populares de Weill pode ser visto em outras de suas composições menos reproduzidas, como em Youkali, tango aqui interpretado pela titânide Nathalie Stutzmann:



A bela Nanna's Lied também merece atenção. Um Weill mais maduro, dramático, na voz de Tiziana Sojat:




Após a Grande Depressão de 1929, a situação econômica e social de Weimar, que já se mostrava delicada, tornou-se incontrolável. Inflação e desemprego atingiram níveis calamitosos, capitais norte-americanos pararam de entrar nos países europeus, a miséria batia à porta dos cidadãos. Em 1933, o partido nazista subiu ao poder na Alemanha para,segundo seu discurso, "pôr ordem na casa". Com sua ascensão, viu-se a perda dos direitos individuais, da liberdade de expressão, substituídos por um Estado militarizado e altamente repressor. Muitos dos artistas de esquerda que conquistaram o povo alemão se viram obrigados a sair do país, indo refugiar-se principalmente no EUA. Todavia, a "terra da liberdade" já se via inserida em um modelo em que a maior parte da produção cultural se encontrava nas mãos de um empresariado cujo interesse se resumia a vender arte. Buscava-se Beethoven, Mozart, Sibelius (fenômeno do início do século), mas não havia espaço para um Stravinsky. Hollywood despontava como um próspero pólo cultural, mas a nova música erudita não era lá apoiada. Alguns compositores conseguiram seu espaço compondo trilhas para cinema, com sua criação sufocada e minada pelos planos dos diretores - foi o caso de Bernard Herrmann e Erich Korngold, mas nunca atingindo o reconhecimento popular que outrora tivera Weill na Alemanha. Porém, o que sobreviveu do período democrático de Weimar até o século XXI é digno de toda a atenção do estudo da arte - mostra como é possível o engajamento do artista em questões políticas e sociais, a abordagem dos problemas e das ideias de uma sociedade por meio da linguagem artística. E, sobretudo, pensar na música de Weill, Eisler, Hindemith, enfim, deve servir como um incentivo a lutar pela liberdade de opinião, pela liberdade de expressão. E, se se for além, imaginar que sempre é possível se usar a arte para tentar construir um mundo mais justo.

15 de novembro de 2011

O início de uma Suposta Maldição (ou "A Décima de Beethoven", simplesmente)

Na virada do século XIX para os anos 1900, circulava no mundo musical uma lenda acerca de uma suposta "maldição da Nona Sinfonia". Desde Beethoven, alguns dos maiores sinfonistas europeus haviam falecido após a conclusão de suas nonas. Franz Schubert, Anton Bruckner, Louis Spohr, Antonin Dvorák, além do primeiro, o mestre de Bonn. Gustav Mahler inclusive chegou a, em uma tentativa de enganar o destino, compôr o ciclo Das Lied von der Erde (A Canção da Terra), uma coleção de canções de dimensão sinfônica após a sua majestosa Oitava, antes de escrever sua Nona Sinfonia. Segundo tal raciocínio, aquela que fora publicada como a nona corresponderia, na verdade, à décima. Não obstante, Mahler viria a falecer após sua publicação, deixando apenas o belo Adagio do que viria a ser sua décima sinfonia. O que poucos sabem é que Beethoven, assim como Mahler, chegou a deixar esboços para sua décima. É verdade que não foi tão longe como compositor austríaco. Ludwig van, ao contrário de Gustav, não chegou a concluir um movimento. Porém, os rascunhos deixados por Beethoven possibilitaram à sua posteridade ter uma ideia de como seria a sinfonia que sucederia aquela que se tornou a mais popular de todos os tempos.

No ano de 1844 (dezessete anos após a morte de Beethoven), Anton Shindler, secretário particular do compositor, levou a público a informação de que Ludwig haveria deixado escritos vários rascunhos para a sua décima sinfonia. Outro secretário seu, Karl Holz, declarara ter presenciado o mestre ao piano executando trechos do que seria o primeiro movimento. Cartas escritas por Beethoven continham claras alusões ao seu desejo de uma nova sinfonia, especialmente após o frenesi causado desde a première da Nona. A partir de então, musicólogos passaram a se interessar por essa provável derradeira composição.

O trabalho de pesquisa de diversos historiadores e musicólogos sobre manuscritos de Beethoven é constantemente prejudicado pela caligrafia - que beirava o indecifrável do compositor - somada ao fato de Ludwig ter deixado milhares de páginas, com poucas linhas, muitas vezes com frases incompletas. Por mais de um século, os manuscritos do que possivelmente seria a décima de Beethoven foram colecionados e estudados, à procura de uma compilação que trouxesse uma visão global sobre o que a sinfonia poderia ser. Em meados da década de 1980, foram apresentadas coleções de rascunhos de Beethoven datados da década de 1820, que mais tarde viriam a ser usados por Barry Cooper, musicólogo britânico especialista na obra do mestre de Bonn, na montagem de um possível movimento. Não há total segurança ou certeza sobre a destinação que o compositor daria a tais manuscritos, especialmente se se levar em consideração a pouca organização dos papéis de Beethoven. Não obstante, o trabalho de pesquisa feito foi o único que chegou a uma resposta sobre a enigmática Décima. Confiável ou não.

Barry Cooper apresentou sua compilação em 1988, tendo nela aplicado temas e motivos encontrados nos rascunhos obtidos. Por mais que páginas e páginas houvessem sido achadas por onde Beethoven escrevera, espaços em branco na montagem ainda se viram frequentes. Coube a Cooper, então, preencher tais espaços com motivos das próprias pautas exploradas. O resultado é um movimento, dividido em três seções (Andante - Allegro - Andante), que muito guarda do estilo de Beethoven. Não é Beethoven, no entanto, vale ressaltar. Porém, é válido recordar outras obras consagradas que foram deixadas incompletas por seus mestres: a missa de Réquiem de W. A. Mozart foi completada por Franz Xaver Süssmayer, aluno do gênio, após sua morte; a própria Décima de Mahler tem várias versões completadas ao longo do século XX, para não citar outros exemplos. Independente da legitimidade um tanto questionável da compilação de Cooper (e de diversas acusações sobre seu trabalho não resultar em música de inspiração comparável a outras obras-primas do compositor), Beethoven segue tendo completado apenas nove sinfonias, indiscutivelmente. Porém, já não se fala mais na "maldição da nona sinfonia". Dimitri Shostakovich cuidou de derrubá-la.


A mais famosa gravação da montagem de Barry Cooper ficou a cargo do maestro Wyn Morris, com a Sinfônica de Londres, em 1993:






Download aqui.

18 de setembro de 2011

Momento sartriano II


Na primeira postagem sobre Sartre, tratei do Sartre dramaturgo. Para o segundo momento sartriano, trago o Sartre romancista. Posto aqui a análise que escrevi e publiquei no site Mundo dos Filósofos em 2007, quando li “A Náusea”. O livro chegou às minhas mãos na expectativa de dissecar meandros do pensamento filosófico que até então eu desconhecia. E cumpriu magistralmente esse intento. Foi, ao mesmo tempo, uma obra chocante e fascinante, que trazia o sentimento da inadaptação do ser humano em seu cerne.

Já afirmei que Sartre não é um filósofo pessimista. E mantenho essa visão. Contudo, “A Náusea” é um livro de um pessimismo inegável e eu teria de me munir de argumentos hercúleos para negar isso. Mas a filosofia sartriana, como um todo, não é pessimista e faz do desamparo o caminho da redenção. Não podemos analisar Sartre somente em uma obra. Seu pensamento não é estanque. Sua filosofia é fluida e passa pelo caminho da gratuidade da existência, da liberdade total e da aquisição da responsabilidade como imperativo. Eu diria que o personagem principal de “A Náusea”, Antoine Roquentin, é o primeiro homem sartriano, ou seja, aquele que se depara com a gratuidade da existência e padece de sua terrível náusea. As outras obras do francês se incumbem de explorar os outros momentos de sua filosofia. A imagem acima é a tela "Ansiedade", de Edvard Munch, um dos meus pintores prediletos.


Análise de “A Náusea”, de Jean-Paul Sartre – por Marcelo Sobrinho Mendonça


Introdução

Em “A Náusea”, Sartre nos mostra Antoine Roquentin, um historiador letrado e viajado, que chega à cidade de Bouville (“boul” indicando “lama” e metaforicamente “impureza”) a fim de escrever a biografia do marquês de Rollebon, figura pitoresca e de excentricidade fascinante, que vivera na cidade durante o século XVIII. Ao iniciar seus trabalhos, logo se desencanta de forma irreversível não só pela biografia, como também pela própria sociedade e condições humanas com as quais se depara em Bouville. Roquentin é, então, acometido por uma (a priori) estranha sensação de aversão ao ser humano e sua condição existencial – a “náusea”. Cercada de um niilismo exacerbado e elucubrações de alta profundidade intelectual, “A Náusea” nos mostra um protagonista despadronizado e repelido pelas próprias contestações que faz a respeito da existência e sua falta de sentido, ou seja, a respeito da gratuidade e ilogicidade da existência, por si só desprovida de essência. Trata-se, portanto, da saga de um personagem conturbado e por vezes beirando a loucura, tal é a nudez existencial a que ele se expõe.

Mecanismos de busca essencial

Como dito, para Antoine Roquentin a existência é gratuita e ilógica e essa constatação por cada um de nós é algo terrível e fora de aceitabilidade. Decorre dessa falta de essência verdadeira uma busca de cada ser humano por sua essência artificial e iludida, havendo, para esse fim, uma série de mecanismos que tornam a existência mais suportável.

Um desses mecanismos próprios de cada um é o que ele chama de “captura do tempo”. Trata-se de uma organização memorial para tornar pequenos fatos, simples existências, marcos de um sentimento aventureiro, fazendo desse “grande” fato um polarizador atrativo dos fatos precedentes, como se esses tivessem levado ao grande fim. Dessa forma, organiza-se a memória humana a partir de fins, na ordem inversa. Esse mecanismo é apontado por Roquentin como uma poderosa instrumentação da mentira, a qual ele mesmo usou sem se dar conta, num ato involuntário de sua própria condição de homem.

Outro mecanismo elucidado pelo protagonista é o mundo do conhecimento e das ciências, criado pelas “grandes mentes” ainda presas em sua busca essencial. Esse mundo, que trata da origem das espécies, da conservação da energia no universo e chega a conferir uma essência “preguiçosa” até às janelas, “com seu índice de refração”, é ilusório e torna o ser humano um conhecedor de seu mundo, um dominador de si mesmo e dos outros, num processo de profunda ilusão. Fazendo uma analogia à alegoria da caverna, de Platão, o homem imagina-se conhecedor de todo um universo, enquanto, na verdade, busca conhecer minuciosamente cada parte (por menor que seja) de sua caverna, sem jamais vislumbrar seu exterior. É mais um engano, sadio para a manutenção da existência.

Um outro mecanismo apontado é o de ordenamento das glórias passadistas pela burguesia acrítica e inábil para a contestação meditativa. Assim, glórias de outras gerações, baseadas no capital e no valor epidérmico do mundo, são relembradas de forma a conferir uma essência, uma lógica, à existência dos burgueses do presente. Esse mecanismo detestável a Roquentin lhe rouba críticas muito contundentes, chamando de “salafrários” a todos os burgueses de Bouville, constituintes desse espécime humano alienado.

Dialogando com Descartes

Da célebre frase “Penso, logo existo”, Sartre, pela voz de Antoine Roquentin, faz um aprofundamento filosófico bem à maneira do Existencialismo, do qual Sartre é figura proeminente. Assim, para o protagonista, a consciência da existência, o sentir-se existir, advém do fato do pensamento, ou seja, à medida que se pensa, sente-se existir. Essa consciência é algo horrível para Roquentin e torna-se ainda pior quando ele constata que a única forma para fugir à existência é fugir ao pensamento. Mas nos perguntamos: como fugir ao pensamento se a necessidade de fuga já é um pensamento, que, como qualquer outro, nos reconduz à existência? Estamos presos, portanto, à existência, pois o caminho do pensamento e a chegada ao sentimento de existir são indesvencilháveis. Eis aí uma bela explicação à referida “náusea”, que intitula a obra, pois quem suportaria estar perfeitamente cônscio de sua prisão sem, ao menos, sentir-se “nauseado”?

Humanismo x Existencialismo

Uma das únicas personagens com quem Antoine Roquentin se relaciona no livro é o Autodidata, um humanista ferrenho que aprendeu grande parte de seu vário conhecimento nos livros da biblioteca municipal, onde trabalha. De orientação filosófica bastante adversa à de Roquentin, ele representa uma personificação do Humanismo. Resulta dos encontros dos dois na biblioteca uma série de discussões de alta profundidade intelectual, num gládio de alto nível entre as duas posturas – a do Humanismo (representada pelo Autodidata, credor das capacidades humanas diferenciais) e a do Existencialismo (representada por Roquentin, niilista, misantrópica e repleta de meditações pessimistas). Após discussões severas, o protagonista Roquentin chega, entretanto, à conclusão de que não vale mais a pena discutir, pois a mente do Autodidata definitivamente não está preparada nem disposta a ouvir seus intricados conceitos, os quais seriam a perdição absoluta de qualquer humanista. Um episódio bastante interessante a ser citado e que ocorre durante um dos encontros dos dois na biblioteca municipal é a morte de uma mosca, esmagada por Roquentin em frente ao Autodidata. Ignorando os pedidos do bibliotecário, Roquentin esmaga a mosca e declara consternado: “Simplesmente libertei-a de sua existência, era um favor a prestar a ela!”. É, sem dúvida, um episódio que deixa bem clara a melancolia advinda do existencialismo sartriano.

Música e Existencialismo

Logo no início da obra, Roquentin é bruscamente retirado de sua incessante náusea por uma composição jazzística de nome “Some of These Days”. A princípio, essa correlação entre alívio e música é bastante misteriosa para o protagonista, mas, aos poucos, ele acaba por entender sua razão. Depois, analisando a atitude daqueles que ele chama de “imbecis”, ou seja, aqueles que vão às salas de concertos buscando o esquecimento dos problemas ou aqueles que buscam superar suas crises com os “Prelúdios de Chopin”, Roquentin conclui que essas pessoas tentam se deixar tocar pela música, como se essa fosse capaz de penetrar os poros do corpo e os vazios da mente, provocando uma mudança de sensações. Na verdade, isso pode ser apontado como mais um mecanismo de esquiva da existência penosa e intratável, de forma que, ao invés de sofrer pura e simplesmente, cada ser humano busca um sofrimento ritmado, melódico, ou como o próprio Roquentin infere: “É preciso sofrer em compasso”. Ele vê-se, portanto, inserido nesse contexto de humanidade, tendo sofrido do mesmo engano que qualquer outro ser humano sofre, ao deixar-se invadir pela música tantas vezes citada “Some of These Days”.

A verdadeira existência

Ao final da obra, após ter reencontrado sua mulher Anny, pela qual ainda pensava nutrir fortes sentimentos, Antoine Roquentin descobre que já não havia entre eles mais nada, exceto a simples repugnância entre quaisquer duas existências, o que o abala extremamente e o leva e abandonar Bouville definitivamente. Antes de partir, entretanto, ele termina por fazer suas reflexões mais escaldantes de toda a obra. Usando de sua ampla visão e conhecimentos, ele divaga sobre o que é a existência definitiva e as relações entre as existências simplórias que encontramos por toda parte, sempre à espreita.

Para ele, por exemplo, a idéia da existência de uma árvore passa a ser gratuita e absurda como qualquer outra existência e o absurdo reside no próprio fato de se existir, isto é, torna-se um absurdo à medida que se existe, pois a existência é desprovida de uma lógica que a fundamente. Já no campo da matemática, uma circunferência encontra em si mesma uma lógica definida e clara – o giro completo de um segmento de reta lhe confere seu fundamento. Logo, o que existe é absurdo exatamente pelo fato de existir e deixa-se o absurdo à medida que se deixa a existência. Também o tempo é visto de uma forma intrigante, sendo nada mais nada menos que a nossa percepção sensitiva da mudança entre duas existências. O tempo, pouco conceituável fisicamente, torna-se filosoficamente algo de simplicidade interessante – entre duas existências e uma observação externa, configura-se a noção de tempo.

Para selar o pessimismo que é detonado a cada página, Roquentin diz ainda que, algum dia, ele vai esbarrar nas ruas com homens cujas línguas estejam transformadas em lacraias e suas feições completamente animalizadas, pois, em sua visão, a igualdade de todas as existências poderia tornar os homens cada vez mais “existentes”, simplesmente “existentes”, como as próprias lacraias o são. O marquês de Rollebon, origem de sua vinda a Bouville, tornara-se, para ele, uma simples fuga de si mesmo, um homem buscando abandonar sua existência e mergulhar na de outro, numa tentativa naturalmente frustrada. Uma das últimas coisas que ele faz em Bouville, antes de tomar seu trem, é sentar-se num banco e observar as existências que o rodeiam, seja a de um lago, a de uma árvore ou a de cada pessoa que ele observa.

Devemos ter em vista, ainda, que “A Náusea” é uma obra que cresceu numa mente inquieta e repleta de conceitos complicadíssimos e, até certo ponto, chocantes – a mente de Sartre. Cresceu também num solo fértil para tais contestações existenciais – um palco beligerante que encaminhava a Segunda Guerra Mundial (iniciada em 1939, um ano após a publicação da obra). Inegavelmente, a obra traz conceitos revolucionários e dissonantes de qualquer forma filosófica precedente, sendo amada por uns e renegada por outros, sem, todavia, perder sua importância no cenário da filosofia do século XX.

7 de agosto de 2011

Momento sartriano I



“Ninguém entravou a minha liberdade, foi a minha vida que a bebeu.”

Jean-Paul Sartre em A Idade da Razão


Jean-Paul Sartre já esteve entre minhas leituras prediletas. O existencialista francês atraiu minhas atenções por sua filosofia inquieta e que buscava soluções alternativas para um novo ser humano, que carregava em seus ombros o total desamparo de uma existência que sempre precede sua essência. A minha postagem se faz como um tributo a um autor que foi parte importante da minha vida de leitor. Jean-Paul Sartre nasceu em Paris no ano de 1905 e, durante os seus 74 anos de vida, foi um grande expoente do engajamento político na França e no mundo, tendo escrito contos, romances, peças teatrais, textos estritamente filosóficos e também para a célebre revista “Le Temps Modernes”. Sua amizade com o grande escritor argelino Albert Camus foi notória por muitos anos. Juntos pensaram, embora não sem divergências, acerca do homem do século XX como só um grupo seleto de filósofos do último século foi capaz de fazer.

A postura intelectual desafiadora de Sartre lhe rendeu atritos memoráveis com o presidente francês Charles de Gaulle, cujo brado de “Fuzilem Sartre!” foi prontamente respondido pelo filósofo: “Não se coloca Voltaire na cadeia”. Sartre era um notável crítico da política colonialista francesa na Argélia. Também o Vaticano, em 1948, se opôs ao existencialismo ateu de Jean-Paul Sartre, incluindo toda a sua obra no Index. Homens como ele passam a vida a reunir companheiros e opositores. E sua filosofia logo se tornou uma moda intelectual no pós-guerra, servindo bem ao momento histórico de angústias e incertezas. A filosofia de Sartre é altamente liberta dos baluartes que justificam a existência e, segundo ela, existir é um evento gratuito. E se existir é gratuito, de fato o homem só poder estar condenado a ser livre. Cabe a somente nós o engenho de nosso próprio mundo. Eis uma idéia corajosa e pungente. A reflexão sobre os conflitos existenciais da humanidade, que se sente nauseada ao se deparar com a gratuidade da existência (sentimento personificado em Roquentin, de “A Náusea”), traz à luz algumas chances de salvação.

O pessimismo pode às vezes ser lido nas páginas que Sartre escreveu, mas não o considero um filósofo pessimista. Na realidade, não vejo nada mais otimista e esperançoso que conceder aos homens a ampla capacidade de governar o seu mundo. Minha perspectiva de condenação à liberdade é a melhor, pois esse aparente paradoxo exclui quaisquer outras condenações. É assim que Sartre sai em busca dos caminhos que podem nos conduzir à liberdade, seja em âmbito político (como o filósofo discute em “A Engrenagem”) ou em âmbito individual. E poucos foram os intelectuais que defenderam tão avidamente a liberdade como Jean-Paul Sartre. Sua filosofia traz a liberdade como bandeira. Mas essa só pode ser hasteada seguindo um caminho árido e penoso, de enfrentamento de conflitos. Em um mundo solapado por regimes totalitários, isso demonstra um grande comprometimento do filósofo com seu tempo. E esse é certamente o grande legado que o intelectual francês deixou – a busca da liberdade como binômio angústia-responsabilidade, na medida em que seus personagens a exercem. Nesse sentido, muitos se perguntam como Sartre pôde apoiar Guevara e Fidel em 1960. Seu rompimento com o regime cubano em 1971, após o encarceramento do poeta Heberto Padilla, explica.

Para dar seguimento ao momento sartriano, selecionei uma de suas peças teatrais para analisar. A peça chama-se Entre Quatro Paredes (“Houis-Clos”, no original) e foi escrita e produzida em 1944, ao final da Segunda Guerra Mundial. Foi representada pela primeira vez em maio desse mesmo ano, no Teatro do Vieux-Colombier, em Paris. É escrita em ato único, merecendo ser lida de um só fôlego, e exibe ainda uma singeleza interessantíssima de cenário e personagens. Digo isso, pois há somente quatro personagens na peça – um criado, o jornalista Garcin, a lésbica Inês e a jovem fútil Estelle, que vão se encontrar em um salão ao estilo Segundo Império. O cenário será sempre esse. A grande força da peça reside no conflito psicológico que se desenvolve em cena, advindo da recriação moderna de um cânone elemento religioso – o inferno. Entre Quatro Paredes se tornou um clássico do teatro sartriano e até hoje continua sendo encenada com sucesso em vários teatros pelo mundo, muitos anos depois de o existencialismo sartriano ter se tornado páginas da história da filosofia ocidental.

No início da peça, um criado conduz o jornalista Garcin ao salão. É importante notarmos a neutralidade em que se constitui a figura do criado. Embora Garcin, morto e ciente de seus terríveis pecados, esperasse pelo inferno, a postura serena do criado mostra que não caberá a ele a função de seu algoz. Estamos em um inferno moderno, existencial. Descobrimos juntos com o jornalista Garcin que nesse inferno (que Sartre criou) não há carrascos, fogo, estacas, grelhas ou quaisquer meios de tortura física. O inferno, segundo Sartre, se passa em um simples salão ao estilo Segundo Império (um ambiente convencional para os franceses). Uma fala do criado nos revela que para os chineses ou para os hindus o ambiente seria outro, mas que lhes parecesse tão familiar quanto um salão estilo Segundo Império aos olhos de um francês. O salão dispõe apenas de poltronas, uma lareira e uma estátua de bronze sobre a lareira.

Não há janelas. Não há possibilidade de se ver além do que ocorre no salão. Tudo o que há e acontece se encerra ali e a fuga é impossível. Também não há noite nem se tem sono no inferno existencialista. O piscar de olhos também foi abolido e essas pequenas fugas da realidade, cerca de quatro mil por hora, deixam de proporcionar qualquer alívio imediato ali. Toda essa recriação do inferno revela uma imaginação prodigiosa e nos vemos subitamente translocados de um inferno físico (religioso) para um inferno psicológico (existencial), o qual não permite o alívio ou o descanso, onde o sentir é inexorável. E nesse cenário, vem se juntar a Garcin as personagens Inês e Estelle, também conscientes de seus pecados em vida, que o leitor conhecerá ao ler a peça. Juntos formarão um triângulo que consolidará essa nova forma de inferno. Os três se vêem nus, existencialmente falando, diante dos outros e a inexistência de espelhos no salão faz com que cada um só possa ser avaliado pelos olhos do outro. O olhar do outro passa a ser o senhor de todo o juízo e cada personagem sente-se existir no outro e não mais em si mesmo. Não há vez para indivíduos ensimesmados no inferno sartriano. E a personagem Estelle, fútil e dependente de sua beleza, descobrirá isso da pior forma possível.

O número de três personagens principais não foi escolhido casualmente por Sartre. Qualquer harmonia ou complementaridade que exista entre dois personagens será esfacelada pela interferência de um terceiro e, por isso, o número “três” representa tão bem o conflito e o desequilíbrio pretendidos no inferno da peça. O vértice mais agudo e desestabilizador do triângulo é a personagem Inês, uma lésbica de sexualidade e conduta bastante incomuns. Ela percebe habilmente as maiores fragilidades de seus companheiros, seja o fantasma da covardia, que assombra Garcin (a estátua de bronze sobre a lareira é de um herói, destinado a acusar a fraqueza do jornalista) ou o histrionismo da beleza, de que é dependente Estelle. Inês joga com ambos com uma perícia ímpar, como quem sabe exatamente onde lhes tocar as feridas que nunca cicatrizarão. Inês seduz Estelle cruelmente – “Você será, no fundo dos meus olhos, o que quiser ser” – e agita a consciência perturbada de Garcin, ao chamá-lo de “Garcin, o covarde”. Os dois não conseguem evitar Inês, a quem cabe sua tortura.

Após os momentos de tempestade por que os três passam no salão, onde as existências já perderam o seu referencial e o tempo não concede o seu perdão, tudo se mostra agora indubitável. Mesmo após a porta ter se aberto e a saída ter sido permitida aos três, nenhum deles deseja mais sair dali. Como afirma Inês, eles são agora inseparáveis. Sentem-se dependentes um do outro e nenhum pode abandonar os outros dois, pois agora parte de sua existência está entranhada em cada um dos companheiros. Abandonar o outro seria divorciar-se de parte de sua existência. Diante dessa compreensão, como uma conclusão da peça, Garcin exclama – “Vocês se lembram: enxofre, fornalhas, grelhas... Ah! Que piada. Não precisa de nada disso: o inferno são os Outros!”. A compreensão os mantém sentados, lívidos, olhando-se, certos de que tudo aquilo jamais teria fim. E Garcin profere como uma sentença final – “Pois bem. Continuemos.”. Isso é fabuloso. Se “nenhum homem é uma ilha”, como afirma o inglês John Donne, não é mesmo um exagero pensarmos que o inferno são os Outros.

Indico a leitura da peça. As citações que fiz foram retiradas da tradução de Alcione Araújo e Pedro Hussak pela editora Civilização Brasileira. Disponibilizo a também boa tradução de Guilherme de Almeida. A bela fotografia do início da postagem foi feita em 1965 por Antanas Sutkus, fotógrafo que registrou a viagem de Sartre e Simone de Beauvoir à Lituânia nesse mesmo ano. Boa leitura a todos!

Baixe aqui a peça "Entre Quatro Paredes".