19 de janeiro de 2011

Terra Sonâmbula


O ano de 1992 marca o fim dos quase trinta anos de guerra em Moçambique. Foram dez anos de guerra pela independência (1965-1975) e cerca de dezesseis anos de guerra civil (1976-1992). Logo me vem à mente alguns ótimos momentos do filme Diamante de Sangue, sobre o conflito de diamantes de Serra Leoa. No filme, se fala em tom de sentença sobre a África: "Deus já esqueceu essas terras". E, em outra passagem, se dá uma explicação de profunda tristeza poética para o tom vermelho das terras de Serra Leoa: tanto sangue derramado já havia tingido para sempre as sofridas terras do país. Infeliz e inevitavelmente, tudo isso passa pela mente de qualquer um quando se pensa no continente africano.

Sendo assim, escrever ou romancear sobre as guerras na África é um prato cheio para qualquer escritor e a escolha de um discurso escancaradamente politizado contra os poderes e os poderosos, contra a inabilidade dos governos e as crueldades dos exércitos e guerrilhas, é a mais fácil e rápida. Fazer um discurso panfletário é uma alternativa bastante lógica e que pode, sim, dar muito certo. Mas não é de lógica simples que vive a literatura modernista e experimental de Mia Couto, escritor moçambicano que só fui ler muito recentemente. Seu ótimo romance "Terra Sonâmbula", sobre o qual venho a escrever nessa postagem, nos mostra que o caminho pretendido por Mia foi muito diferente.

Essa obra, escrita em 1992 e que já foi considerada um dos doze melhores romances produzidos na África do século XX, adota um discurso poético em profundidade (o própria Mia se declara um poeta em prosa), eivado de elementos das mitologias tribais moçambicanas e de sonhos que inundam as 204 páginas do romance. O tom onírico é, certamente, o grande pilar que sustenta as palavras de Mia Couto. É através da poesia e dos sonhos que se expõem as crueldades da guerra e se buscam as soluções para a desespero do povo moçambicano.

A obra trata de duas histórias que se desenvolvem em paralelo e alternadamente - a história do menino Muidinga e do velho Tuahir e a história de outro garoto, de nome Kindzu, todos os personagens vitimados pelos traumas da guerra. Após deixarem um campo de refugiados, Muidinga e Tuahir encontram um machimbombo (espécie de ônibus) incendiado e, em seu interior, corpos carbonizados. Junto a um desses corpos, o menino Muidinga encontra os onze cadernos de outro menino - Kindzu. E é a leitura de Muidinha para Tuahir desses cadernos que desenvolve a segunda história do romance, a do citado Kindzu. Assim, na obra, há onze capítulos contando a história de Muidinga e Tuahir e onze cadernos contando a história de Kindzu a partir de seus escritos.

Ambas as histórias se desenvolvem em meio a um clima beligerante, que torna tudo instável e suspenso ao longo o livro. Muidinga e Tuahir, ao longo da estrada e se abrigando no machimbombo, procuram nada mais do que a sobrevivência. Buscam fugir da guerra e de sua impiedosa violência. Muidinga ainda se recupera da "mantakassa", nome por qual é conhecida a neuropatia atáxica tropical, doença causada pela ingestão de uma variedade de mandiocas (dita "maquela") que contem alta concentração de cianeto. Assim, os escritos do outro menino passam a ser uma fuga para os dois, uma imersão nas curiosas histórias de Kindzu. Esse, por sua vez, conhece uma mulher chamada Farida, que mora em um barco abandonado e o encontro dos dois constrói um grande amor. Ambos tiveram suas famílias esfaceladas pela guerra e Kindzu passa a buscar o filho perdido de Farida, fruto do abuso de Romão Pinto, homem que ajudou a cuidar de Farida quando ela fugiu de sua terra.

As fantásticas trajetórias dos personagens surpreendem por belas passagens, reveladoras do que há de mais endêmico na cultura de Moçambique, com seus tchótis, mampfanas e xipocos. Como se esquecer da lindíssima passagem do "fazedor de rios"? Me refiro a Nhamataca, grande sonhador, que constuiu um extenso buraco na terra, para ali a chuva inundar, para ali correr o rio que nutriria a terra, "confeitaria" os peixes e devolveria a paz e a esperança aos homens. Nhamataca termina levado pelas águas da chuva que edificaram o seu sonho, que formaram o seu rio, o rio ao qual gentilmente ofertou sua vida para reacender a esperança e para afagar a terra combalida. Como não admirar também os naparamas, guerreiros que guerreiam somente pelo fim das guerras? O próprio garoto Kindzu sai de sua terra sonhando em encontrar os naparamas, para um deles se tornar, para se converter em um guerreiro da paz e da justiça.


Há ainda frases que levam o leitor à reflexão plena, como "A guerra é uma cobra que usa nossos próprios dentes para nos morder".
Outra passagem a ser lembrada é aquela em que se narra a morte de um homem que, em total desespero, já preparava uma corda de sisal para se enforcar, temente do que a guerra brutal lhe poderia reservar. Pois, de fato, a guerra o embosca antes mesmo de o homem terminar o seu utensílio de morte, agora, como nas palavras de Mia, um "inutensílio", um dos muitos neologismos que Mia usa em sua obra. Essa passagem termina com o corpo do homem sendo levado por soldados, arrastado no meio da rua, e com uma nova reflexão aforismática de Mia Couto: "A morte, afinal, é uma corda que nos amarra as veias. O nó está lá desde que nascemos. O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco" e, logo depois, "Aquele era o funeral que cabia ao anônimo desvalido: poeirando pela rua, as moscas zunzinando, contratadas carpideiras dos ninguéns".

Podemos interpretar ainda os cadernos de Kindzu como um relato das mazelas de Moçambique, de todo o sofrimento que naquela terra há, de toda a falta de esperança de seu povo e de possíveis soluções que ainda existem para uma nação em destroços. Não é à toa que as mazelas e as soluções aparecem nos cadernos de um menino, que são lidos pelos olhos de outro garoto. O que nos fica do emprego dessa idéia é que está nas mãos dos meninos, dos jovens moçambicanos, o futuro de seus país, isto é, continuar o passado amargo ou buscar um futuro mais promissor, no qual os moçambicanos tem direito a sonhar e a construir sua própria estrada, sem sucumbir às desgraças da guerra.

O discurso final, feito por um feiticeiro nganga num sonho de Kindzu, traz de forma arrebatadora um quadro-geral seguido de suas soluções, que devem ser buscadas na própria identidade do povo moçambicano. Mia Couto, nas últimas páginas do livro, revela uma hipótese em suspenso para a identidade do filho perdido de Farida, que Kindzu buscou por boa parte do livro. Obviamente, eu não vou contar que hipótese é essa, a fim de que os leitores se interessem pelo livro e por descobrir esse segredo! Mas uma coisa eu lhes posso dizer: desde Cem Anos de Solidão, de García Márquez, que eu não lia um final tão avassalador, de se prender a respiração e se encantar tão profundamente. O final de "Terra Sonâmbula" não deve nada para o cataclísmico desfecho que o colombiano García Márquez deu ao seu romance, em um fim já prenunciado pelo cigano Melquíades e que atinge seu apogeu na célebre sentença "[...]
porque as estirpes condenadas aos Cem Anos de Solidão não têm uma segunda oportunidade sobre a terra".

Transcrevo parte do discurso do feiticeiro do sonho de Kindzu (merece e muito ser lido):

"Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão serão ainda piores. Foi por isso que fizeram essa guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse montros no lugar da esperança. Não mais procureis vossos familiares que saíram para outras terras em busca de paz. Mesmo que os reencontreis eles não vos reconhecerão. Vós vos convertêsteis em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos tirar do país, mas para tirar o país de dentro de vós. Agora, a arma é a vossa única alma. [...] E há de vir um vento que arrastará os astros pelos céus e a noite se tornará pequena para tantas luzes explodindo sobre vossas cabeças. As areias se voltearão em remoinhos furiosos pelos ares e os pássaros tombarão extenuados e ocorrerão desastres que não tem nome, as machambas serão convertidas em cemitérios e, das plantas, secas e mirradas, brotarão apenas pedras de sal. [...] No final, porém, restará uma manhã como esta, cheia de luz nova e se escutará uma voz longínqua como se fosse uma memória de antes de sermos gente. E surgirão os doces acordes de uma canção, o terno embalo da primeira mãe. Esse canto, sim, será nosso, a lembrança de uma raiz profunda que não foram capazes de nos arrancar. Essa voz nos dará a força de um novo princípio e, ao escutá-la, os cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes abraçarão a vida com o ingénuo entusiasmo dos namorados. Tudo isso se fará se formos capazes de nos despirmos desse tempo que nos fez animais. Aceitemos morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos converteu."

Obs: machamba = terra agrícola.

Leitura indicadíssima a todos! Divirtam-se aqueles que forem ler! E até a próxima postagem!

3 comentários:

  1. Ahh Marcelo adorei sua postagem!!Mesmo não tendo lido o livro não há como não ter vontade agora com as suas palavras tão entusiasmadas e belas sobre a obra!!Obrigada por compartilhar um pouco dessa história!

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  2. Leia sim, Amanda! Vale a pena! E obrigado pelo comentário!

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  3. Marcelo, concordei com a amanda... A riqueza com que relatou a história e as referências que usou despertaram meu interesse,(mesmo sendo um tema q a principio não tenho tanta simpatia). Pelo q entendi, me parece q a autora se desprendeu do preconceito com q o continente é sempre visto, não é?! Parabéns pelo belo texto!

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