Resolvi dedicar minha primeira postagem nesse ótimo blog a um escritor fabuloso e que sempre indico para qualquer pessoa com quem converso sobre literatura. Franz Kafka foi um habilidosíssimo autor na arte da metáfora. Seus escritos, mesmo os menos conhecidos, impressionam pela particular capacidade de permitir uma infinidade de interpretações, pois são propositadamente imprecisos e alegóricos. Para falar de Kafka, não usarei suas obras mais conhecidas ou extensas, como A Metamorfose, O Processo e O Castelo. Minha munição será um pequeno conto escrito em 1922 e intitulado Um Artista da Fome, talvez não tão familiar a muitos leitores.
Usando de mais um arquétipo (tal como o inesquecível e comovente Gregor Samsa), o conto trata do eterno embate kafkiano entre o "eu" e a "sociedade". A figura arquetípica dessa vez é o jejuador, o artista da fome, um homem que possui a incrível capacidade de passar longos tempos sem ingerir qualquer alimento. O artista da fome faz do jejum e da inanição a sua arte - a arte da fome, usada em apresentações quase circenses para exibir a toda e qualquer gente uma fascinante criatura. Criatura enjaulada, artista do absurdo, artista da aberração. E, assim, o jejuador logo é alvo da curiosidade de todos. Todo tipo de gente quer vê-lo, assistir suas apresentações grotescas e humilhantes. Todos "querem, à força, o beijo na lona", citando Humberto Gessinger, ótimo letrista dos Engenheiros do Hawaii. A arte do inacreditável é intensamente instigante a qualquer um. Crianças e adultos querem ver a esqualidez do artista, suas costelas protuberantes, suas feições sofridas. Todos querem ver para crer.
Mas toda a curiosidade acerca do pobre homem, seja por espectadores ou por empresários, logo se esvai. A arte de levar o corpo aos limites de sua fisiologia passa a ser desinteressante e até repulsiva, afinal de contas, o absurdo é curioso, mas também provoca a ojeriza, o distanciamento. As crianças que se davam as mãos, apreensivas, para ver o artista, já não o desejam mais. Os adultos que o olhavam perplexos, como algo ou alguém pertencente a outro mundo, não o olham mais. O artista perde seu prestígio. Seu sofrimento transita, já irreversivelmente, do incrível ao mais miserável absurdo. O conto termina quando um inspetor pergunta ao esquecido jejuador, próximo à sua jaula, o motivo de ele se manter tanto tempo em jejum. O artista, para o qual o jejum era tão fácil, lhe explica que ele fazia isso não por não ter fome e sim por nunca ter encontrado alimento que lhe satisfizesse. Essas são as derradeiras palavras do sofrido artista. Agora, o jejuador dará lugar a uma pantera em sua antiga jaula.
Analisando o conto, percebemos que a figura do jejuador é extremamente misteriosa. Numa sociedade em que a comida é tão fácil, tão acessível e tantos lhe empurram qualquer coisa goela abaixo, é, de fato, difícil se manter em tão prolongado jejum. Mas a comida no conto não é literalmente comida, alimento. Em nosso tempo, as regras da sociedade, os comportamentos e as atitudes tendem a se igualar, a serem repetidas em série. Na nossa sociedade contemporânea, a todos se oferece a mesma comida e quase todos a comem. Quase todos vestem o mesmo uniforme social. Quase todos pensam e agem como peças de uma linha de montagem e buscam sempre os mesmos ideais subservientes e pré-estabelicidos. É essa a comida de que Kafka trata no conto - a padronização da sociedade. Não à toa, o autor é tão aclamado como um arauto do que viria a se constituir a sociedade do século XX. E o entendimento que o escritor tcheco tem disso é absolutamente impressionante.
O absurdo, o fugir dos padrões e dos dogmas sociais é interessante, inicialmente, e desperta curiosidade e admiração. Mas essa é a superfície de um conteúdo não tão clemente. O que se segue é a repulsa, o asco social aos que não comem da comida que, de tão bom grado, é a todos oferecida. A aberração de se viver à margem da sociedade é um desgosto para os seus fiéis integrantes e lhes tem gosto de derrota, ainda que pequena. E a nossa sociedade não é a sociedade da derrota. Nossa sociedade é aquela em que todos "devem" comungar dos mesmos valores para todos serem "vitoriosos". Ao menos, essa é a promessa que todos tendem a buscar. Alguns a buscam e somente amargam derrotas. Outros não a buscam e morrem derrotados da mesma forma. Esses últimos são representados pelo "herói" kafkiano - o artista da fome.
Obviamente, o que escrevi representa somente as minhas interpretações do conto. Cada leitor deverá ter as suas. Indico, então, a leitura desse conto fantástico. Leitura rápida, entendimento trabalhoso. Boa leitura a todos! Até meu próximo post!
Leia o conto aqui
12 de janeiro de 2011
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