É possível que a música seja uma das poucas artes que, hoje, no ocidente, não trazem grandes heranças da civilização greco-romana. Nossa arquitetura, nossas artes plásticas, literatura, filosofia são produtos de uma série de mudanças que tiveram sua origem nos dois grandes impérios da antiguidade no Ocidente. A música não. As bases da nossa música foram lançadas na Idade Média, séculos e séculos mais tarde. Pouco sabemos sobre a música dos gregos e romanos antigos, fato que pode até se justificar pela escassez de evidências acerca do caráter, do estilo de sua produção musical. E esse pouco que se sabe pouco influencia a nossa música. Resquícios dessas canções antigas podem ser ainda encontrados no repertório do início da era medieval, como o canto gregoriano. Mas é este que nos interessa hoje, é dessa música reformada que partiram as evoluções que levaram ao que ouvimos em nosso tempo.
Atribui-se ao papa Gregório I (590-604) a codificação de um novo estilo de canto, o chamado coral gregoriano. Essa nova música teria como fim único servir a Deus e à Igreja. Vale lembrar, claro, que trata-se de um período em que predominava por toda a Europa feudal católica uma visão teocêntrica do mundo. A Igreja era detentora de grande poder político e econômico, além de exercer uma influência incalculável sobre o indivíduo, que a ela dedicaria a integralidade de sua vida, seu corpo e sua alma não importanto a camada social a que se pertencia. O canto recém-codificado é caracterizado, acima de tudo, por ser acapella (sem acompanhamento instrumental) e rigidamente monódico (não há polifonia, todo o coro canta a uma só voz), o cantochão. a melodia estaria submetida ao texto cantado, acompanhando fielmente o texto litúrgico. Consequência disso é a ausência de uma estruturação rítmica em tempos ou compassos. O cantochão estava sempre restrito às igrejas, catedrais e monastérios.
Ao mesmo tempo, nas vilas, aldeias e também nos castelos, havia a música que era de fundo à poesia lírica popular e à poesia dos trovadores. Esta já não estava tão submetida às rígidas regras do cantochão. Há registros de canções trovadorescas contando com até seis vozes melódicas distintas, com textos que tratavam dos mais diversos temas do cotidiano - amor, guerra, sexo, vinho, sorte, moral. Essa música profana alcançou um alto grau de popularidade no interior da Europa ocidental.
O século XIII marcou uma série de fortes mudanças na Europa. Foi o século da construção das grandes catedrais, das reformas no ensino das universidades e das traduções dos textos aristotélicos. A música, claro, não deixaria de sofrer também mudanças, especialmente nas igrejas, como explica Otto Maria Carpeaux, em seu "Uma Nova História da Música":
Houve, dentro do Coral Gregoriano, o germe de uma evolução: a contradição entre a obrigação de acompanhar fielmente o texto litúrgico, à maneira de recitativo, e, por outro lado, a presença de tão rica matéria melódica, os “melismos” que se estendem longamente quase como coloraturas, sem consideração do valor da palavra. Essa contradição levaria à divisão das vozes: uma, recitando o texto; outra, ornando-o melodicamente.
A partir de então, a polifonia entrou no ambiente eclesiástico, começando a formar os alicerces do rebuscamento e da complexidade da música renascentista.
A região da antiga Borgonha, que já havia sido habitada por gauleses, romanos, germânicos e francos foi, a partir do fim da Idade Média, berço de uma nova classe de músicos: os chamados "mestres flamengos". Sua contribuição foi elevar a ainda recatada polifonia do canto lírico medieval aos seus mais altos expoentes. Compositores hoje esquecidos como Guillaume Dufay, Jacob Obrecht, Josquin des Prez, Johannes Ockeghem e Orlandus Lassus, estudaram a fundo as técnicas de composição - a Igreja, claro, continuava detendo o conhcimento e as técnicas de produção artística - todos esses mestres foram, em algum momento, funcionários do clero, a maioria como regentes de coros - e criaram novos motetos (corais sacros) e madrigais (corais profanos) em que cada uma das vozes, cada vez mais numerosas, tinha independência completa, podendo até mesmo conter diferentes textos.O produto disso foi a obtenção de enormes massas sonoras, com novas harmonias, sonoridades e de difícil compreensão das palavras. O texto cantado já não era mais o centro das atenções, como era poucos séculos atrás. Foram escritas as primeiras missas integralmente cantadas, consolidou-se a forma musical "missa" (Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Benedictus, Agnus Dei). Um exemplo dessa riqueza que representava a música da renascença é o moteto Deo Gratias, de Johannes Ockeghem, com trinta e seis vozes, como se reproduzisse um coro de dezenas de anjos. A composição polifônica renascentista conta com tamanha complexidade que o ouvinte contemporâneo muitas vezes sente-se "perdido" em meio a tantas melodias simultâneas.
Com todos os avanços na harmonia e no contraponto da composição quatrocentista e quinhentista, imaginava-se que o futuro da música seguiria por esse rumo. Entretanto, a Igreja católica viu uma absurda necessidade de recodificar sua música, simplificar sua escrita. Isso ocorreu por causa de um novo fenômeno que se expandia pelo continente: a Reforma Protestante.
O monge alemão Martinho Lutero viveu uma série de atritos com a Igreja romana, ao denunciar a corrupção e a venda de indulgências pelo clero, e ao mesmo tempo propôr uma Igreja mais acessível aos seus fiéis (tradução dos textos bíblicos e dos cultos religiosos para cada língua nacional, livre acesso dos fiéis às escrituras, redução do número de sacramentos, crença na salvação pela fé, etc.). A fundação do Protestantismo luterano deu abertura à formação também de outras novas igrejas reformadas, como a calvinista, a anabatista, anglicana, e tantas outras, que foram alcançando grande popularidade na Europa numa rapidez impressionante.
A Reforma Protestante levou também mudanças no campo musical. A música que estava sendo criada então, com tamanha riqueza de vozes, textos e adornos, era uma música de difícil compreensão, difícil acesso. O cidadão comum mal entendia o texto que estava sendo cantado. Reproduzi-lo, então, era algo utópico. As novas Igrejas formadas viam o canto de então como algo "elitista", "antipopular", e pretendia mudar esse panorama. A música do novo culto era algo extremamente mais simples: voltou-se ao canto em uma só voz, com acompanhamento instrumental, ritmo marcado e facilmente assimilável, e uma diferença essencial: não era mais exclusividade do clero. Pela primeira vez, toda a assembléia cantaria, bateria palmas, a uma só voz. A música estava, então acessível a qualquer um, atraindo multidões.
Se a Igreja católica quisesse manter seus fiéis, seria necessário haver fortes mudanças. E houve, a chamada Contra-Reforma.
Entre tantas medidas que não nos interessam tanto aqui, como a volta do Tribunal do Santo Ofício, a reafirmação de tantos dogmas e da autoridade papal, a criação do catecismo, vale destacar o Concílio de Trento, onde foram discutidos por autoridades religiosas os tópicos que deveriam ser mantidos ou alterados. A Igreja católica deveria atrair e manter seus fiéis. E, também aí, a música foi um dos mecanismos para tal.
A Contra-Reforma marcou daquele rebuscamento polifônico, daquela complexidade e variedade de harmonias e massas sonoras dos corais de Josquin, Ockeghem e companhia. Foi definido que o texto religioso deveria voltar a ter um lugar de destaque na composição, e que esta deveria seguir padrões mais compreensíveis pelo público. Convencionou-se então, que o número de vozes deveria ser reduzido, e que todas elas deveriam seguir o mesmo texto. Era, consequentemente, também o fim da liberdade total de cada uma dessas linhas melódicas. A chamada organização "horizontal", em que cada melodia segue seu curso, sem a necessidade de notas de acordes cantadas simultaneamente, deu lugar à organização "vertical". Todas as vozes deveriam se encontrar em determinadas palavras, para formar acordes que destacassem as idéias contidas nessas palavras-chave, e também para facilitar a compreensão do texto como um todo. Assim começou, lentamente, o retorno ao canto monódico, posteriormente consolidado por Claudio Monteverdi. Mas na Contra-Reforma, o grande nome da composição foi Giovanni Perluiggi da Palestrina.
Palestrina foi o compositor da Igreja Católica que sintetizou todas essas novas definições em sua música, e criou um repertório sacro riquíssimo, tanto em número de obras como na riqueza de cada uma delas. Sua arte tinha o fim único de servir à Igreja romana. É carregada de uma forte carga emocional, coerente com a idéia a ser transmitida. Em sua música, já é possível encontrarmos acordes mais claros, e entendermos o texto declamado - quase sempre, um texto bíblico, ou uma oração tradicional. E, de fato, foi uma forte arma com a qual sua Igreja contou para acompanhar as atrações das Igrejas reformadas. Um ótimo exemplo é seu Stabat Mater, cuja letra e tradução encontram-se no próprio vídeo:
Pouco mais tarde, o Protestismo também ofereceu ao mundo seus primeiros gênios musicais, como Händel e Bach na Alemanha. Fato é que seu surgimento desencadeou uma série de mudanças no panorama musical europeu quinhentista e seiscentista, mudanças essas que perduram até os nossos dias. A polifonia não acabou, as inovações na composição não acabaram. Porém, a Reforma trouxe à tona uma nova idéia: a de tornar, novamente, a arte acessível a todos. E assim se manteve por muito tempo.
Download do Stabat Mater de Palestrina aqui
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Muito bom o texto, Ígor! Meus parabéns.
ResponderExcluirAdoro história da música - é algo que eu gostaria de saber mais; seu texto me deu uma esclarecida boa :D
Aliás, acho que a história da música devia ser mais ensinada, assim como a história da arte de uma maneira geral... É algo muito importante das pessoas saberem - por menos que as pessoas achem isso.
Lindíssimas as obras do Ocheghem e do Palestrina :D
Um beijo,
Bruna
Ockeghem*
ResponderExcluirImagino que você gosta de canto gregoriano e, portanto, convido-o a visitar a minha página: www.gregoriano.org.br
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