30 de dezembro de 2010

Estudos de um romântico sem pátria

O piano é hoje conhecido por oferecer uma infinidade de sons, texturas, caráteres, que o bom intérprete pode e deve explorar de variadas maneiras, de acordo com o contexto no qual se insere cada peça que executa. Não é estranho para ninguém a diferença que há entre o toque macio e expressivo dos Noturnos de Frédéric Chopin; o som selvagem, quase martelado do Allegro Barbaro de Béla Bartók; o caráter brilhante das Rapsódias Húngaras de Franz Liszt, dentre vários outros exemplos, de Haydn a Stockhausen. Isso oferece ao piano um repertório riquíssimo e diversificado, riqueza esta que, de certa forma, pôs o instrumento entre os mais queridos e populares no mundo ocidental.

Apesar de o repertório apresentado com o piano nas salas de concerto englobar composições desde o início do século XVII, o instrumento tal qual conhecemos hoje, ou pelo menos algo próximo (o pianoforte, de Bartolomeo Cristofori, com o qual tiveram contato grandes compositores como Clementi, Haydn e Mozart), surge apenas um século depois. Até então, um respeitável repertório para teclado - cravo, órgão, clavicórdio, etc. - já havia sido construído (prova disso é a infinidade de obras-primas que nos deixou J.S. Bach), e grandes compositores como Jean-Phillippe Rameau, Carl Philipp Emanuel Bach, François Couperin, entre outros, já haviam publicado tratados sobre a execução de instrumentos de teclado, até hoje buscados por músicos que desejam referências sobre a maneira ideal de se interpretar o repertório do período. Porém, ao decorrer do século XVIII, o estilo barroco foi aos poucos sendo abandonado, dando lugar a uma nova estética. O rebuscamento, a riqueza de adornos nas linhas melódicas, os caráteres contrastantes de motivos coexistentes, e mais outros caracteres que estiveram presente em toda a arte barroca, retrato da contra-reforma, em que a Igreja, grande patrocinadora das artes, buscava passar uma idéia de grandiosidade e do dualismo entre bem e mal, tudo isso foi perdendo lugar para o que chamamos estilo clássico. No que se refere ao estilo de composição, introduziu-se um rigor formal fortíssimo, no que diz respeito à métrica, disposição de temas, variações e digressões; uso frequente de escalas e arpejos e, de certa forma, uma música de caráter mais leve, menos denso - análogo ao caráter bucólico da literatura árcade. Paralelamente, o advento do pianoforte exigiu que houvessem mudanças na técnica interpretativa, em relação ao que havia sido proposto no Barroco.

Durante século XIII, um considerável número de compositores dedicou séries de estudos ao novo instrumento. Carl Czerny, Charles-Louis Hanon, Johann Baptist Cramer, Muzio Clementi, entre outros, escreveram estudos que tinham como fim aprimorar a técnica e o virtuosismo do pianista. Porém, muitas vezes, esses estudos visavam a técnica pura, incentivando o fortalecimento, a agilidade e a independência dos dedos, mas não dando tanta atenção ao que diz respeito à interpretação musical. Um perfeito exemplo são os exercícios de Hanon - o primeiro deles talvez seja o mais conhecido:



E, dessa forma, os Estudos para piano estiveram, por mais de um século, encarados como composições que desafiassem e aprimorassem a técnica do intérprete. A técnica, e nada mais.














Quando Chopin foi buscar a vida em Paris, em 1830, o piano ainda sofria uma série de modernizações. A Polônia, sua terra natal, havia sido recentemente invadida e estava sobre o tríplice domínio de Prússia, Áustria e Rússia. O jovem compositor, de apenas vinte anos, já carregava, como José Miguel Wisnik colocou em seu ensaio O Piano de Chopin, uma expectativa de representar, em sua música, o retrato e a identidade de uma nação que, politicamente, não mais existia, "a pátria romântica". Frédéric contava, então, com um piano Pleyel, uma das duas fortes fabricantes de pianos na Paris do século XIX. Naqueles anos, uma nova sensação chamada Franz Liszt arrebatava as platéias parisienses com suas composições pujantes, cuja intensidade era ainda realçada pelo som brilhante, volumoso do piano Érard. Chopin, por sua vez, dispunha de um Pleyel. O que os diferenciava era o som mais doce, menos brilhante que o Pleyel produzia, mas que oferecia maiores possibilidades de explorar diferentes sonoridades e nuances, produzidas por diferentes maneiras de ataque ao teclado - e foi justamente por trabalhar nesse ponto que Frédéric Chopin se destacou entre os compositores de sua época.

Por volta dos primeiros anos do compositor na França, a obra recém-redescoberta de Johann Sebastian Bach passava a ser utilizada na iniciação de pianistas em Paris, ao lado dos estudos de Cramer, Czerny, Clementi e outros. E Chopin também dedicou-se a escrever seus próprios estudos. Porém, algo novo aparecia nos estudos do jovem polonês - na contramão de seus antcessores, seus estudos eram verdadeiras e completas obras musicais. Além de serem desafios à técnica do executante, os Estudos de Chopin trabalham a fundo o leque de sonoridades e de atmosferas que o instrumento em constantes mudanças oferecia. Diferenciavam cada tipo de ataque, cada intensidade das notas, mesclava linhas melódicas em uma polifonia herdada da música de Bach. E passaram a representar algo além de meros estudos para técnica pianística, sendo hoje peças frequentes nos recitais de pianistas.

Posteriormente, outros compositores vieram também a escrever estudos com intenções semelhantes às de Chopin. O próprio Liszt, com seus Estudos Transcedentais, Sergey Rachmaninoff, com seus Études-Tableaux, ou Alexander Scriabin, por exemplo, compuseram peças visando trabalhar problemas técnicos, ao mesmo tempo exigindo grande musicalidade.

Chopin escreveu vinte e quatro estudos, sendo doze deles catalogados no opus 10, outros doze no opus 25. Cito como exemplo o primeiro, que trabalha os arpejos. Porém, são séries de arpejos mais extensos que o usual, exigindo do pianista uma abertura respeitável dos dedos, em uma velocidade que exige elevadíssimo grau de independência dos dedos na mão direita, enquanto a mão esquerda faz a melodia principal nos registros graves do piano. No decorrer da peça, são explorados também contrastes de intensidade, e novas melodias surgem em meio aos arpejos. A interpretação é de Vladimir Ashkenazy:



O terceiro estudo, o mas popular, também conhecido como "Tristesse", trata de legatos (maneira de se tocar em que liga-se uma nota à outra, não interrompendo-seo som entre elas) e ritmos irregulares. Nele, fica muito clara a idéia chopiniana de explorar diferentes sonoridades do piano. Chopin, certa vez, disse considerar o Estudo Op. 10 nº 3 dono de uma de suas mais belas melodias, que o remetiam à Polônia onde havia crescido, a pátria romântica então inexistente cuja bandeira o compositor carregaria por toda a sua vida. De fato, a música de Chopin conta com uma expressividade e saudosismo incomuns. A interpretação é do grande Sviatoslav Richter:



E assim em diante, cada um dos 24 estudos explora dificuldades técnicas diferentes com diferentes caráteres musicais, cada um em uma das vinte e quatro tonalidades maiores e menores que a escala ocidental oferece (aos moldes dos Prelúdios e Fugas do Cravo bem Temperado de Bach). E, vale acrescentar, a partir de Chopin o piano passa a ser visto de maneira mais "completa", podemos assim dizer. A principal herança que Chopin nos deixa é a maneira de tratar o piano - seu único instrumento - como essa fonte inesgotável de atmosferas e - por que não dizer? - de sentimentos.





Download dos 24 Estudos, com o pianista Maurizio Pollini aqui

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