
Retomando minhas postagens no blog, hoje venho tratar de duas grandes distopias escritas no século XX e ambientadas em uma Londres disforme– “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley e “1984”, de George Orwell. Ambos os autores dedicaram-se de maneira fabulosa a questionar os rumos que a humanidade daria para si mesma nos anos vindouros. Huxley escreveu sua grande obra em 1931 e Orwell, em 1948, dois anos antes de sua morte. Não pretendo com o post estabelecer uma comparação de qualidade entre as duas obras, mesmo porque são distopias com focos diferentes e com fortalezas também distintas. A meu ver, “1984” é mais densa e conquista mais enquanto obra literária, especialmente em seu final, que amadurece muito o discurso do romance. Por outro lado, as idéias que Huxley emprega em seu “Admirável Mundo Novo” são mais complexas e abrangentes, nos parecendo mais táteis. Independente de suas abordagens, são obras essencialmente sombrias e que jogam um feixe de luz sobre o ascetismo servil e crudelíssimo que construímos pouco a pouco. Umas das cenas finais de “1984”, por exemplo, é uma das coisas mais terríveis e inesquecíveis que já li. Mas não se enganem: sob nenhuma análise, Huxley passa perto da inocuidade. Acima, a tela “O Gigante Acéfalo”, de Max Ernst.
Vamos às obras. “Admirável Mundo Novo” se passa no ano de 632 d.F. (depois de Ford), em uma referência clara ao mecanicismo alienante com que os seres humanos são produzidos na obra. No romance, os seres humanos são formados em tubos de ensaio e cabe ao Estado gerenciar tal produção. Família ou pais são conceitos inimagináveis. A promiscuidade sexual é compulsória e a busca de qualquer relacionamento duradouro é considerada um ato de subversão altamente pusilânime. Mobilidade social sequer é um sonho, pois se trata de uma sociedade de castas, em que as castas Alfa, Beta, Gama, Delta e Ípsilon são produzidas industrialmente e a base dessa pirâmide social (os Ípsilons) é gerada em série para ser absolutamente inapta a qualquer atividade intelectual. Os indivíduos jamais contestam essa estratificação social inflexível, pois nos tubos de ensaio em que são gerados, os Ípsilons recebem menos substrato ao seu desenvolvimento mental. São incapazes por sua própria natureza.
Toda essa metodologia, amparada pela legitimidade científica, é chamada de método Bokanovsky. E a esse método, somam-se o condicionamento neopavloviano e a hipnopedia. O condicionamento é magistralmente exemplificado na obra, na passagem em que bebês ouvem sons assustadores ao se aproximarem de livros, constituindo futuramente uma horda de cidadãos alheios ao conhecimento e à cultura. Axiomas tacanhos são também introjetados durante o sono dos indivíduos, durantes anos a fio. E pela repetição implacável, eles se tornarão verdades inabaláveis. Eis a hipnopedia. Para suportar a desumanização em nome da estabilidade social e do progresso técnico, criou-se a droga “soma”, capaz de induzir o sono e levar a mente às aventuras mais impossíveis. Esse é o Admirável Mundo Novo, onde a arte, o conhecimento e as paixões mais nobres foram apagados para sempre.
Já a obra de Orwell, “1984”, foi a grande empreitada a que o autor se dedicou, profundamente desiludido com os rumos que o socialismo tomou, especialmente o soviético, já satirizado em “A Revolução dos Bichos”. A obra de Orwell é essencialmente política, como é o próprio autor. Ele imagina o ano de 1984 vivendo sob um socialismo totalitário, em que as liberdades individuais são reduzidas a quase nada. Teletelas estão espalhadas por toda parte e vigiam a todos. A Polícia do Pensamento se dedica a capturar os ideocriminosos (aqueles que tenham qualquer idéia contrária ao regime) e um idioma intolerante, chamado de Novilíngua e baseado na destruição de palavras, foi criado para permitir a veiculação exclusiva de idéias favoráveis ao Partido.
Só há três grandes Estados – a Oceania, a Eurásia e a Lestásia, que se mantêm sempre em guerra. Mas a guerra visa somente manter o poder de cada um dos Estados, o que no livro se chama de “estado de guerra”, um clima constantemente beligerante, tornando os indivíduos peças de um jogo de ódio ao inimigo e submissão servil ao governo, que sempre noticia vitórias em batalhas falsas. A guerra visa à paz e ao “status quo” e esse é um dos lemas do Partido – “Guerra é Paz”. Os outros são: “Escravidão é Liberdade” e “Ignorância é Força”. O chefe do partido é o Big Brother (ou “Grande Irmão”), figura que nenhum cidadão viu e cujo paradeiro todos desconhecem. O Grande Irmão é somente a centralização do poder. O medo e o estado de vigilância perene são armas do Partido e do Grande Irmão, que espalham como boatos a existência de uma organização de traidores, a Fraternidade, liderada por Goldstein. Nessa sociedade, qualquer opositor é vaporizado e seus registros são destruídos, como se nunca tivesse existido. Torna-se uma “impessoa”. A sociedade de “1984” se baseia no “duplipensar”, princípio que admite a existência de ambivalências absurdas, se esse for o ditame do Partido.
Nesses dois cenários de obscurantismo tonitruante, surgem os personagens que conspiram contra o sistema. Em Huxley, Bernard Marx e John (um “selvagem”, que é trazido de um reduto onde se vive como outrora). Em Orwell, Winston e Júlia. Seus destinos são selados quando eles tomam o caminho da oposição. Mas mais importante ainda que entendermos suas trajetórias nos respectivos romances é analisarmos a relevância dos elementos que os autores empregam. Huxley, embora cronologicamente em um futuro mais distante, consegue ser mais impactante pelo fato de identificarmos desde já algumas de suas denúncias. Os relacionamentos fugazes, o progresso técnico, a decadência da arte e da formação crítica já fazem parte da nossa realidade. No livro, pessoas se tratam pelo verbo “experimentar”. É fatídico que não verbalizamos hoje de forma muito diferente e não vemos nada de estranho nisso. O hedonismo de “Admirável Mundo Novo” não é tão diferente do nosso.
A arregimentação que conduz os habitantes do Admirável Mundo Novo aos princípios da uniformização dos costumes e da intolerância deliberada a qualquer pensamento não unânime já nos pertence. Pessoas lêem cada vez menos. Os livros artísticos ocupam cada vez mais o fundo das nossas livrarias. Nossos filmes hipervalorizam o espetáculo que acoberta a falta de idéias e tendemos a acreditar que os filmes em três dimensões são um passo gigante na trajetória da sétima arte. Isso é sugerido pelo cinema sensível de Huxley, que induz o entendimento raso pela sensibilidade primitiva, que dispensa e atrofia o pensamento. Podemos traçar ainda um elo entre o uso hiperlativo dos antidepressivos e benzodiazepínicos atuais e a ostensivamente utilizada droga “soma” do romance. Tudo nesse mundo é asséptico. A doença e a velhice foram banidas pela tecnologia e, como afirma Huxley, "hoje os velhos copulam e trabalham". E as crianças já tem sua iniciação sexual na mais tenra idade, com seus brinquedos eróticos. É impossível ler “Admirável Mundo Novo” sem sentir-se estupefato com determinadas semelhanças com o que se vive hoje, após apenas 80 anos de seu lançamento. Aí reside a grande força do livro.
George Orwell e sua mais importante obra nos parecem mais distantes. Sua previsão não é necessariamente cronológica e seria infantil vê-la dessa forma. Mas se até os regimes que pregam a distribuição de benesses se corrompem, fica inteligível sua frase mais emblemática: “Se quer uma imagem do futuro, imagine uma bota pisando sobre um rosto humano para sempre”. “1984” trata da questão da opressão de uma forma muito contundente. Indivíduos controlados, que tudo fazem para o Estado, são a pior face da opressão. Poderíamos imaginar a sociedade contemporânea não tão longe disso, dado que nosso trabalho é muitas vezes repetido, explorado e sequer pensamos em seu objetivo, como no mito de Sísifo, que rola uma pedra montanha abaixo, para depois carregá-la ao cume novamente. Além disso, se até o que nos é mais particular, ou seja, o nosso pensamento, é violável, então não nos resta nenhuma chance de salvação.
Uma cena que me marcou tremendamente enquanto leitor é aquela, próximo ao final da obra, em que o torturador chega ao prisioneiro (encarcerado nos confins do Ministério do Amor, que se encarrega da tortura, novamente aludindo ao “duplipensar”) e declara que ele é o último representante da humanidade. Em seguida, ele pede ao prisioneiro que se olhe no espelho e veja o último resquício da humanidade e o reflexo acusa um homem esquálido, gemente, a sangrar, com cicatrizes a lhe cobrir o corpo. Orwell é absolutamente brilhante nessa passagem, construindo imageticamente a metáfora do fim da humanidade enquanto indivíduos que pensam e sentem e não somente se submetem. No romance, a falsificação de fatos históricos é amplamente utilizada para facilitar a dominação. Os noticiários da guerra e os dados do Partido sobre índices sociais são constantemente falsificados, de forma a provocar a histeria coletiva de que tudo progride. A notícia recente de que o governo chileno decidiu trocar o termo “ditadura” por “regime” ao referir-se ao governo de Augusto Pinochet é um exemplo que me obriga a uma pergunta retórica: será a falsificação da História um mero devaneio orwelliano?
No cômpito geral, destaco que a importância de se ler Orwell e Huxley não é a de nos sentirmos tentados a confirmar todas as suas hipóteses futurísticas. Huxley, por exemplo, jamais previra o desastre atômico que pôs fim à Segunda Guerra Mundial. Muito mais do que isso, ler tais distopias é importante para despertar um juízo crítico sobre a própria caminhada da nossa história e sobre o que construímos para gerações futuras. Nesse sentido, essas obras são extremamente válidas, mais para desferirmos perguntas que para acharmos respostas prontas e inatas. Huxley e Orwell nos tornam mais conscientes e cautelosos, para que a vida talvez não seja “uma mera história narrada por um tolo, cheia de som e fúria, significando nada”.

