7 de agosto de 2011

Momento sartriano I



“Ninguém entravou a minha liberdade, foi a minha vida que a bebeu.”

Jean-Paul Sartre em A Idade da Razão


Jean-Paul Sartre já esteve entre minhas leituras prediletas. O existencialista francês atraiu minhas atenções por sua filosofia inquieta e que buscava soluções alternativas para um novo ser humano, que carregava em seus ombros o total desamparo de uma existência que sempre precede sua essência. A minha postagem se faz como um tributo a um autor que foi parte importante da minha vida de leitor. Jean-Paul Sartre nasceu em Paris no ano de 1905 e, durante os seus 74 anos de vida, foi um grande expoente do engajamento político na França e no mundo, tendo escrito contos, romances, peças teatrais, textos estritamente filosóficos e também para a célebre revista “Le Temps Modernes”. Sua amizade com o grande escritor argelino Albert Camus foi notória por muitos anos. Juntos pensaram, embora não sem divergências, acerca do homem do século XX como só um grupo seleto de filósofos do último século foi capaz de fazer.

A postura intelectual desafiadora de Sartre lhe rendeu atritos memoráveis com o presidente francês Charles de Gaulle, cujo brado de “Fuzilem Sartre!” foi prontamente respondido pelo filósofo: “Não se coloca Voltaire na cadeia”. Sartre era um notável crítico da política colonialista francesa na Argélia. Também o Vaticano, em 1948, se opôs ao existencialismo ateu de Jean-Paul Sartre, incluindo toda a sua obra no Index. Homens como ele passam a vida a reunir companheiros e opositores. E sua filosofia logo se tornou uma moda intelectual no pós-guerra, servindo bem ao momento histórico de angústias e incertezas. A filosofia de Sartre é altamente liberta dos baluartes que justificam a existência e, segundo ela, existir é um evento gratuito. E se existir é gratuito, de fato o homem só poder estar condenado a ser livre. Cabe a somente nós o engenho de nosso próprio mundo. Eis uma idéia corajosa e pungente. A reflexão sobre os conflitos existenciais da humanidade, que se sente nauseada ao se deparar com a gratuidade da existência (sentimento personificado em Roquentin, de “A Náusea”), traz à luz algumas chances de salvação.

O pessimismo pode às vezes ser lido nas páginas que Sartre escreveu, mas não o considero um filósofo pessimista. Na realidade, não vejo nada mais otimista e esperançoso que conceder aos homens a ampla capacidade de governar o seu mundo. Minha perspectiva de condenação à liberdade é a melhor, pois esse aparente paradoxo exclui quaisquer outras condenações. É assim que Sartre sai em busca dos caminhos que podem nos conduzir à liberdade, seja em âmbito político (como o filósofo discute em “A Engrenagem”) ou em âmbito individual. E poucos foram os intelectuais que defenderam tão avidamente a liberdade como Jean-Paul Sartre. Sua filosofia traz a liberdade como bandeira. Mas essa só pode ser hasteada seguindo um caminho árido e penoso, de enfrentamento de conflitos. Em um mundo solapado por regimes totalitários, isso demonstra um grande comprometimento do filósofo com seu tempo. E esse é certamente o grande legado que o intelectual francês deixou – a busca da liberdade como binômio angústia-responsabilidade, na medida em que seus personagens a exercem. Nesse sentido, muitos se perguntam como Sartre pôde apoiar Guevara e Fidel em 1960. Seu rompimento com o regime cubano em 1971, após o encarceramento do poeta Heberto Padilla, explica.

Para dar seguimento ao momento sartriano, selecionei uma de suas peças teatrais para analisar. A peça chama-se Entre Quatro Paredes (“Houis-Clos”, no original) e foi escrita e produzida em 1944, ao final da Segunda Guerra Mundial. Foi representada pela primeira vez em maio desse mesmo ano, no Teatro do Vieux-Colombier, em Paris. É escrita em ato único, merecendo ser lida de um só fôlego, e exibe ainda uma singeleza interessantíssima de cenário e personagens. Digo isso, pois há somente quatro personagens na peça – um criado, o jornalista Garcin, a lésbica Inês e a jovem fútil Estelle, que vão se encontrar em um salão ao estilo Segundo Império. O cenário será sempre esse. A grande força da peça reside no conflito psicológico que se desenvolve em cena, advindo da recriação moderna de um cânone elemento religioso – o inferno. Entre Quatro Paredes se tornou um clássico do teatro sartriano e até hoje continua sendo encenada com sucesso em vários teatros pelo mundo, muitos anos depois de o existencialismo sartriano ter se tornado páginas da história da filosofia ocidental.

No início da peça, um criado conduz o jornalista Garcin ao salão. É importante notarmos a neutralidade em que se constitui a figura do criado. Embora Garcin, morto e ciente de seus terríveis pecados, esperasse pelo inferno, a postura serena do criado mostra que não caberá a ele a função de seu algoz. Estamos em um inferno moderno, existencial. Descobrimos juntos com o jornalista Garcin que nesse inferno (que Sartre criou) não há carrascos, fogo, estacas, grelhas ou quaisquer meios de tortura física. O inferno, segundo Sartre, se passa em um simples salão ao estilo Segundo Império (um ambiente convencional para os franceses). Uma fala do criado nos revela que para os chineses ou para os hindus o ambiente seria outro, mas que lhes parecesse tão familiar quanto um salão estilo Segundo Império aos olhos de um francês. O salão dispõe apenas de poltronas, uma lareira e uma estátua de bronze sobre a lareira.

Não há janelas. Não há possibilidade de se ver além do que ocorre no salão. Tudo o que há e acontece se encerra ali e a fuga é impossível. Também não há noite nem se tem sono no inferno existencialista. O piscar de olhos também foi abolido e essas pequenas fugas da realidade, cerca de quatro mil por hora, deixam de proporcionar qualquer alívio imediato ali. Toda essa recriação do inferno revela uma imaginação prodigiosa e nos vemos subitamente translocados de um inferno físico (religioso) para um inferno psicológico (existencial), o qual não permite o alívio ou o descanso, onde o sentir é inexorável. E nesse cenário, vem se juntar a Garcin as personagens Inês e Estelle, também conscientes de seus pecados em vida, que o leitor conhecerá ao ler a peça. Juntos formarão um triângulo que consolidará essa nova forma de inferno. Os três se vêem nus, existencialmente falando, diante dos outros e a inexistência de espelhos no salão faz com que cada um só possa ser avaliado pelos olhos do outro. O olhar do outro passa a ser o senhor de todo o juízo e cada personagem sente-se existir no outro e não mais em si mesmo. Não há vez para indivíduos ensimesmados no inferno sartriano. E a personagem Estelle, fútil e dependente de sua beleza, descobrirá isso da pior forma possível.

O número de três personagens principais não foi escolhido casualmente por Sartre. Qualquer harmonia ou complementaridade que exista entre dois personagens será esfacelada pela interferência de um terceiro e, por isso, o número “três” representa tão bem o conflito e o desequilíbrio pretendidos no inferno da peça. O vértice mais agudo e desestabilizador do triângulo é a personagem Inês, uma lésbica de sexualidade e conduta bastante incomuns. Ela percebe habilmente as maiores fragilidades de seus companheiros, seja o fantasma da covardia, que assombra Garcin (a estátua de bronze sobre a lareira é de um herói, destinado a acusar a fraqueza do jornalista) ou o histrionismo da beleza, de que é dependente Estelle. Inês joga com ambos com uma perícia ímpar, como quem sabe exatamente onde lhes tocar as feridas que nunca cicatrizarão. Inês seduz Estelle cruelmente – “Você será, no fundo dos meus olhos, o que quiser ser” – e agita a consciência perturbada de Garcin, ao chamá-lo de “Garcin, o covarde”. Os dois não conseguem evitar Inês, a quem cabe sua tortura.

Após os momentos de tempestade por que os três passam no salão, onde as existências já perderam o seu referencial e o tempo não concede o seu perdão, tudo se mostra agora indubitável. Mesmo após a porta ter se aberto e a saída ter sido permitida aos três, nenhum deles deseja mais sair dali. Como afirma Inês, eles são agora inseparáveis. Sentem-se dependentes um do outro e nenhum pode abandonar os outros dois, pois agora parte de sua existência está entranhada em cada um dos companheiros. Abandonar o outro seria divorciar-se de parte de sua existência. Diante dessa compreensão, como uma conclusão da peça, Garcin exclama – “Vocês se lembram: enxofre, fornalhas, grelhas... Ah! Que piada. Não precisa de nada disso: o inferno são os Outros!”. A compreensão os mantém sentados, lívidos, olhando-se, certos de que tudo aquilo jamais teria fim. E Garcin profere como uma sentença final – “Pois bem. Continuemos.”. Isso é fabuloso. Se “nenhum homem é uma ilha”, como afirma o inglês John Donne, não é mesmo um exagero pensarmos que o inferno são os Outros.

Indico a leitura da peça. As citações que fiz foram retiradas da tradução de Alcione Araújo e Pedro Hussak pela editora Civilização Brasileira. Disponibilizo a também boa tradução de Guilherme de Almeida. A bela fotografia do início da postagem foi feita em 1965 por Antanas Sutkus, fotógrafo que registrou a viagem de Sartre e Simone de Beauvoir à Lituânia nesse mesmo ano. Boa leitura a todos!

Baixe aqui a peça "Entre Quatro Paredes".


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