30 de dezembro de 2011

Num caldeirão de ideologias, um sonho popular

A derrota da Tríplice Aliança na Primeira Guerra Mundial inaugurou uma fase inédita na Alemanha. A recém-proclamada República de Weimar instalou, pela primeira vez em uma Alemanha unificada, um regime democrático. No entanto, a república foi instalada em um momento em que ainda se tinha fresca na memória dos alemães uma nítida e saudosa recordação de um império promissor, que outrora havia almejado ser a grande potência de seu tempo e que, do alto de sua vertiginosa ascenção política e industrial, havia pouco sofrera a maior humilhação de sua história ao perder a Primeira Guerra à Tríplice Entente. Seria de se esperar, portanto, que Weimar se mostrasse uma república sem uma população de republicanismo convicto. E, de fato, o que havia em Weimar era um mosaico inebriante de tendências políticas e culturais. Após o fracasso na guerra, era possível andar pelas ruas de Berlim e observar comunistas, fascistas, anarquistas, socialdemocratas, dadaístas; cada qual exercendo sobre seus simpatizantes uma influência exponencialmente superior à que o próprio governo exercia. Os opostos coexistiam no mesmo espaço, criando em torno da Alemanha dos anos 20 um imenso leque de possibilidades, expectativas, visões de mundo e, consequência de tudo isso, manifestações artísticas. Não é de se espantar que os primeiros anos de Weimar foram marcados por uma série de golpes, contragolpes, assassinatos políticos, conspirações. O pesquisador austríaco naturalizado brasileiro Otto Maria Carpeaux, certa vez, colocou com propriedade: "para novas angústias, novas expressões". É sob essa ótica que se deve tentar compreender as infinitas novas tendências artísticas que surgem ao longo do tempo - especialmente no caldeirão de angústias que era a Alemanha do pós-guerra.

Ao mesmo tempo em que disputavam espaço em Weimar todas as possíveis ideologias, toda a Europa começava a receber a mídia de massa, tendo no rádio sua principal arma. Com ela, o jazz, o frenesi industrial, os loucos anos 20 conquistavam, mais e mais, seu lugar no Velho Continente. Berlim consolidava os ares de uma metrópole moderna, de cujo dia-a-dia faziam parte a fumaça dos automóveis, as chaminés das indústrias, as ferrovias, os cafés, cabarés, empresários, operários, mendigos. Num período de inédita democracia, era possível o fortalecimento de ideias progressistas entre a classe trabalhadora; o avanço de uma esquerda alemã foi notável. E, junto a isso, derrubava-se entre os artistas o hábito de trabalhar para os grupos que estivessem no poder. Pelo contrário, pela primeira vez houve espaço também para a contestação, diante de uma inflação que parecia incontrolável, crescente desemprego e problemas sociais graves, frutos da impressão descontrolada de papel-moeda sem lastro pelo governo de Weimar, que acumulava dívidas e mais dívidas após a guerra. Thomas Mann chegou a declarar que os alemães "aprenderam a enxergar a vida como uma louca aventura, cujo resultado não dependia de seus próprios esforços, mas de forças sinistras e misteriosas", o que, de certo modo, explica o pessimismo que reinou no país. Intelectuais emergiram na cena artística berlinense com o intuito de falar às camadas populares, pondo-as no centro da produção artística e, dessa forma, no centro de uma nova percepção de sociedade. Paul Hindemith, Berthold Brecht, Hans Eisler, Ernst Krenek, Elizabeth Hauptmann, Kurt Weill, Lotte Lenya entre outros despontavam como novos artistas se opunham ao discurso Schoenberguiano de que a arte não deveria buscar a identificação popular, e sim um puro retrato da visão de quem a produz. Dava-se início, na República de Weimar, a uma arte voltada para as massas, em que o homem comum era o objeto principal da manifestação - rejeitava-se a dissonância de Schoenberg em nome de algo que também valorizasse o tradicional.

No campo da música, a chamada Zeitoper (ópera do momento), em que se exploravam temas populares; seja na estrutura musical ao mesclar o clássico ao jazz, ao ländler e a outros estilos de maior aceitação do público; seja nos temas explorados, com situações do dia-a-dia, envolvendo proletários, mendigos, prostitutas, abandonando os temas aristocráticos da ópera Verdiana. O cidadão teria acesso a uma arte que lhe servia e representava. Porém foi com Kurt Weill que, talvez, se tenha elevado a busca por um apelo popular ao seu máximo expoente. Weill propôs a ideia do Gestus, gesto musical, o momento em que texto verbal, fala, encenação e música convergeriam, juntos, no mesmo sentido. A ideia que se quer transmitir seria expressa em todos os aspectos. E, nessa busca, Weill se aliou ao dramaurgo Berthold Brecht, junto do qual deixou algumas das mais importantes obras do período entre-guerras, entre as maiores expressões de um curto sonho democrático.

Brecht atraiu Weill a uma esquerda mais agressiva, provocativa. A partir de sua união, surgiu Mahagonny Songspiel, em que se tenta apropriar -se da linguagem pop norte-americana que invadia Berlim. Como seria de se imaginar, sucesso absoluto de público. Empolgados com o sucesso de seu primeiro lançamento, Brecht e Weill dedicaram-se a um projeto mais ambicioso, que culminaria em uma ópera popular de maiores dimensões. Aqui, pode-se ver Lotte Lenya, esposa de Kurt Weill, cantando Alabama Song, mais conhecido trecho de Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, na qual cidadãos constroem uma cidade em que tudo é possível, tudo é permitido, desde que e tenha ouro. Uma ácida sátira ao sistema capitalista ao qual Brecht se opunha ardentemente.




Aqui, Wie man Sich Bettet, outra canção de Ascenção e Queda da Cidade de Mahagonny, em que fica explícita a influência do jazz norte-americano:





Não obstante, foi A Ópera dos Três Vinténs o trabalho mais bem sucedido de Brecht e Weill. Nele, se explora como nunca o anti-herói, a crueldade, a sujeira e a corrupção. Seu protagonista, Macheath, encarna a figura do serial-killer, o assassino frio, cruel, o típico gênio do crime. O Macheath de Brecht tenta personificar o que há de abominável nas cidades de seu tempo, como fruto do sistema - uma figura cativante e sedutora ao espectador, sobretudo. Brecht explora a imagem de um criminoso implacável em Macheath, que salta da condenação à forca ao título de barão. Pode-se entender o criminoso de Brecht (não apenas o da Ópera dos Três Vinténs) como uma paródia da impune corrupção política alemã de seu tempo. Logo na abertura da peça, é apresentada ao público sua intenção:"Vocês ouvirão agora uma ópera. Porque ela foi planeada de forma tão pomposa, como só um mendigo poderia sonhar, e porque ela deveria ser tão barata, que até os mendigos possam pagar, ela se chama A Ópera dos Três Vinténs".

Há uma gravação antiga da canção Die Moritat von Mackie Messer, cartão de visitas dos três vinténs - trecho que, no Brasil, foi imortalizado por Chico Buarque, ao escolhê-lo para construir sua paródia na Ópera do Malandro (na verdade, inspirada em toda a pela de Brecht e Weill) - cantada pelo próprio Berthold Brecht:



Apesar de sua contribuição incontestável para a música de Weimar, o público é quase unânime ao preferir outras interpretações à do dramaturgo da canção de sua própria peça. Aqui, Louis Armstrong canta a versão em inglês da mesma canção, Mack the Knife:




Uma pesquisa nem tão detalhada no youtube resultará em outras notáveis interpretações de Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Bobby Darrin, Sting.


Mais do estilo de tendências populares de Weill pode ser visto em outras de suas composições menos reproduzidas, como em Youkali, tango aqui interpretado pela titânide Nathalie Stutzmann:



A bela Nanna's Lied também merece atenção. Um Weill mais maduro, dramático, na voz de Tiziana Sojat:




Após a Grande Depressão de 1929, a situação econômica e social de Weimar, que já se mostrava delicada, tornou-se incontrolável. Inflação e desemprego atingiram níveis calamitosos, capitais norte-americanos pararam de entrar nos países europeus, a miséria batia à porta dos cidadãos. Em 1933, o partido nazista subiu ao poder na Alemanha para,segundo seu discurso, "pôr ordem na casa". Com sua ascensão, viu-se a perda dos direitos individuais, da liberdade de expressão, substituídos por um Estado militarizado e altamente repressor. Muitos dos artistas de esquerda que conquistaram o povo alemão se viram obrigados a sair do país, indo refugiar-se principalmente no EUA. Todavia, a "terra da liberdade" já se via inserida em um modelo em que a maior parte da produção cultural se encontrava nas mãos de um empresariado cujo interesse se resumia a vender arte. Buscava-se Beethoven, Mozart, Sibelius (fenômeno do início do século), mas não havia espaço para um Stravinsky. Hollywood despontava como um próspero pólo cultural, mas a nova música erudita não era lá apoiada. Alguns compositores conseguiram seu espaço compondo trilhas para cinema, com sua criação sufocada e minada pelos planos dos diretores - foi o caso de Bernard Herrmann e Erich Korngold, mas nunca atingindo o reconhecimento popular que outrora tivera Weill na Alemanha. Porém, o que sobreviveu do período democrático de Weimar até o século XXI é digno de toda a atenção do estudo da arte - mostra como é possível o engajamento do artista em questões políticas e sociais, a abordagem dos problemas e das ideias de uma sociedade por meio da linguagem artística. E, sobretudo, pensar na música de Weill, Eisler, Hindemith, enfim, deve servir como um incentivo a lutar pela liberdade de opinião, pela liberdade de expressão. E, se se for além, imaginar que sempre é possível se usar a arte para tentar construir um mundo mais justo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário