Quando Bernard Mahler e Marie Hermann mudaram-se para Iglau, na Boêmia, Gustav Mahler era apenas um criança de quatro meses de idade. Naquele ano, 1860, Gustav ainda era o segundo filho mais velho do casal de judeus (assumiu o papel de primogênito após a morte prematura de seu irmão mais velho, Isidor). O clima na casa da família Mahler era tenso. O casamento de Bernard e Marie aconteceu contra a vontade da esposa, que vinha de uma família extremamente pobre. Ele era um homem violento, autoritário. Ela, segundo Gustav comentou, já adulto, uma mulher doce, porém infeliz. Mahler cresceu vendo constantes brigas entre seus pais, algumas delas culminando em agressões físicas a Marie. Esses constantes atritos entre o casal afetavam tanto o pequeno Gustav que, como ele próprio lembrou mais tarde, chegou a fugir correndo de casa para não ter que assistir à mãe sendo maltratada. Nessa ocasião, tomado pela angústia, ouviu um realejo na rua tocando a alegre canção popular Ach, du Lieber Augustin. O psicanalista Sigmund Freud, com quem Mahler se consultava nos seus últimos anos, afirmou que "a partir daquele momento, a conjunção entre grande tragédia e divertimento ligeiro se fixou de modo insolúvel em sua mente"*. Os conflitos familiares vividos por Mahler na infância deixaram profundas marcas na memória do compositor, marcas estas que vieram a influenciar diretamente em sua obra.
Mahler mudou-se para Viena, a fim de cursar o conservatório, em 1875. Viena era, então, uma cidade impecavelmente estilizada. Não havia um mísero detalhe na cidade que não fosse rigorosamente estetizado. A cidade abrigava, simultaneamente, monumentais edificações no estilo moderno e monumentos e prédios no mais refinado estilo clássico. A música de Mahler expressa exatamente essa estética luxuosa e ambígua da Viena em que viveu. Em 1880, começou a reger, sendo a partir de então conhecido em diversas casas de ópera da Europa Central. Sua regência agradava ao público europeu e, também, à crítica especializada. Com isso (e também graças à ajuda do amigo Johannes Brahms), conseguiu, em 1897, o cargo de diretor da Ópera da Corte de Viena. Para que pudesse assumir o cargo, converteu-se com entusiasmo ao catolicismo.
Gustav levava a carreira de regente como carro-chefe de seus planos profissionais. Sua carreira como compositor teve seu início de maneira lenta e desagradável. Mahler já havia, antes de assumir a Ópera da Corte de Viena, composto algumas peças, mas sua primeira obra mais ousada foi a Sinfonia nº1, 'Titã'. Em sua estréia, arrancou alguns aplausos do público, mas também muitas vaias e gestos de indiferença foram percebidos.
Sua vida de compositor na Europa foi marcada por fortes frustrações. Sua música, herança das lembranças de sua infância, alterna momentos de profunda angústia com passagens de completa felicidade. A orquestração que explorava era extremamente pesada, em relação ao até então usual. O público europeu não estava preparado para a música de Mahler. E Mahler não estava preparado para as vaias do público europeu. Chegou a declarar a um crítico, no ano de 1906: "Enquanto eu for o 'Mahler' vagando entre vocês, 'um homem entre homens', devo me contentar com uma recepção 'demasiadamente humana' à minha figura criadora. Só quando houver me desvencilhado deste pó terreno será feita justiça. Sou aquilo que Nietzsche chamou de um 'extemporâneo'..."*
Apesar do sucesso absoluto que foi a estréia vienense de sua Oitava Sinfonia, Mahler anunciou sua demissão em 1907. Naquele mesmo ano, havia perdido sua filha mais nova, Maria Anna Mahler, que morreu de difteria aos três anos de idade. Também havia descoberto que portava uma grave doença cardíaca. Se sua vida profissional não ia bem, a pessoal estava pior. Fez as malas, e mudou-se para Nova York, onde já havia negociado com a direção do Metopolitan Opera o cargo de regente da casa. Receberia, lá, o maior salário até então pago a um músico, segundo os dirigentes.
Como regente em NY, Mahler obteve enorme aceitação do público. Contudo, caiu a direção do Metropolitan, e Mahler foi então substituído por outro grande nome da regência mundial - o italiano Arturo Toscanini. Gustav, então, foi nomeado regente da reestruturada Filarmônica de Nova York, no fim de 1909, cargo que ocupou até o fim de sua vida. Um ano depois, descobriu que sua mulher, Alma, o traía, e passou a tratar-se com Sigmund Freud.
O ano de 1910 e o início de 1911 correram bem, para Mahler, no que dizia respeito à carreira de regente. Em fevereiro de 1911, regeu seu último concerto em NY. Devido a uma endocardite bacterial, foi obrigado a cancelar os concertos seguintes. Regressou apressadamente a Viena, onde veio a falecer no dia 18 de maio.
A vida pessoal catastrófica de Gustav Mahler teve forte influência no caráter melancólico - às vezes bipolar - de sua obra. Suas peças mais importantes são as dez sinfonias (sendo a décima inacabada) e os ciclos de Lieds.
A Sinfonia nº 2, que trago aqui, foi a primeira na qual Mahler utilizou a voz humana. Escrita para orquestra, soprano e mezzo-soprano solistas e coral, entre 1888 e 1894, é conhecida como "Ressurreição", devido à sua temática, que traz reflexões sobre a crença cristã na ressurreição das almas. A regência é de Claudio Abbado, com a Orquestra do Festival de Lucerna, 2003. Soprano Eteri Gvazava, mezzo-soprano Anna Larsson.
O primeiro movimento é uma marcha fúnebre. Não é a única sinfonia de Mahler que se abre com um movimento de caráter obscuro, denso. É uma marcha na qual destacam-se as melodias das cordas e dos metais. Neste primeiro movimento, o compositor altera um pouco a estrutura tonal tradicional. Modulações inesperadas estão presentes na paritura. É difícil definir os temas exatos do primeiro movimento, e ainda mais difícil definir suas reexposições, se é que elas existem. Essa discussão até hoje causa divergências entre músicos do mundo inteiro.
O segundo movimento é um lento Ländler (dança típica austríaca, que lembra uma valsa), de caráter alegre, com passagens dramáticas nas seções intermediárias. Uma analogia às lembranças felizes da alma do falecido.
O terceiro movimento é baseado no texto "Des Antonius von Padua Fischpredigt" (A prédica de Antônio de Pádua aos Peixes), da coletânea de poemas populares alemães "Des Knaben Wunderhorn" (A Trompa Maravilhosa do Menino). Comporta um grande número de referências a outras peças. É um scherzo, com caráter alegre, gracioso. Nele, aparecem muito as figuras das madeiras, em constante diálogo com as cordas.
O quarto movimento reassume um pouco a atmosfera dramática do primeiro e das seções intermediárias do segundo, introduzida já pelo primeiro verso que canta a mezzo-soprano, de maneira lamentosa. É uma profissão de fé da alma, cujo texto foi retirado de uma canção popular, "Urlicht" (Luz Original) também do ciclo "Des Knaben Wunderhorn". As cordas acompanham, em pianissimo, o canto da mezzo-soprano, enquanto as madeiras apenas parecem na segunda seção do movimento, dialogando com o canto principal.
"Ó, pequena rosa vermelha!
Os homens estão na mais profunda miséria,
Os homens estão no mais profundo sofrimento!
Como eu estaria melhor no Paraíso!
Eu vinha por um estreito caminho,
E eis que veio um anjo
E quis fazer-me recuar.
Ah! Não, não me deixei convencer.
Eu vim de Deus e regressarei a Deus,
O amado Deus me dará uma pequena luz
Que me iluminará o caminho
Até a bem-aventurada vida eterna!"
Uma grande e súbita explosão dos metais, precedida por um rápido gesto das cordas graves, abre o majestoso quinto e último movimento. Este pode ser dividido em duas seções: a primeira, até a entrada do coro; a segunda daí em diante. Na primeira, Mahler faz um passeio pela orquestra. Diferentes temas são introduzidos, desenvolvidos, reexpostos, variados. Alguns deles já haviam aparecido nos movimentos anteriores (a explosão inicial, mesmo, é também o clímax do terceiro movimento). Uma atmosfera de certa calma é construída. Algumas passagens destacam-se pela intensidade, entre tantas outras em piano. Na segunda seção, coro e solistas entoam um trecho do poema "Die Aufertstehung" (Ressurreição), de Friedrich Gottlieb Klopstock, concluído pelo próprio Mahler. A letra fala da ressurreição da alm, tal qual imaginada por Gustav. o caráter musical segue relativamente tranquilo, como na primeira seção, até que duas frases entoadas vivamente pelo coro anunciam um pequeno duo das solistas, que leva a uma belíssimas sequências de progressões entre as vozes do coro, em um único verso. Esta começa em pianissimo, e vai, aos poucos, crescendo, até a explosão final. Uma explosão cheia de vida, esperança, alegria. O clímax final da sinfonia, construído lentamente, e concluído de maneira exuberante por toda a orquestra. A ressurreição, a vitória da alma, o triunfo sobre a morte.
"Ressucitarás, meu corpo, sim, ressucitarás
Após um breve repouso!
Vida imortal te daá aquele que te chamou.
Para renascer ´que foste semeado.
O Senhor da colheita recolherá em feixes
O que resta de nós, que morremos.
Meu coração! Crê, sim, crê!
Nada de ti se perderá!
É teu tudo o que desejaste, que amaste,
Tudo pelo que lutaste.
Crê, não nasceste em vão.
Não viveste e sofreste em vão.
O que nasceu deve perecer!
O que pereceu ressucitará!
Não tremas!
Prepara-te para viver!
Ó dor, que tudo abarcas,
De ti eu escapei.
Ó morte, tu que tudo dominas,
Agora foste conquistada!
Com as asas que alcancei
Com ardente amor,
Levantarei vôo em direção à luz
Que nenhuma vista penetrou.
Morrerei para viver!
Sim, ressucitarás, meu coração, em um instante!
O que sofreste, o que sofreste, para Deus te conduzirá!"
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* Citações retiradas do livro "O Resto é Ruído: escutando o século XX", de Alex Ross (Companhia das Letras, 2009)
8 de dezembro de 2009
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Muitíssimo obrigado por publicar esta tradução da 2ª. Eu já ouvi inúmeras vezes, algumas vezes com legendas, mas sempre em inglês ou francês. É a primeira vez que consigo encontra-la em português. Felicidades Ígor.
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