Stanley Kubrick, em seu 2001: Uma Odisséia do Espaço, tornou mundialmente conhecidos dois gigantes da música erudita do século XX. Um deles é o húngaro György Ligeti (inclusive, a inclusão de seu Atmosphères no filme de Kubrick sem a devida autorização do compositor gerou atritos entre os dois). O outro, infinitamente mais popular, é o alemão Richard Strauss, autor de Also Sprach Zarathustra, cujo Prólogo é usado como fundo da clássica cena em que um chimpanzé descobre que tem a capacidade de usar uma ossada como arma e, com isso torna-se mais forte; a evolução de uma espécie. Esse excerto de sua peça, utilizado por Kubrick, por si só, mostra toda a genialidade e competência do compositor, ao explorar a série harmônica do si bemol no início de cada uma de suas frases, dando a cada sequência uma conclusão diferente. Esse, a partir daí, passou a ser o cartão de visitas da obra do compositor alemão para a grande maioria dos ouvintes, visto que o tema passou a ser utilizado em filmes, telenovelas, campanhas publicitárias, etc. Em maior escala, é o que também aconteceu com a famosíssima trilha da "cena do banheiro" do filme Psicose, de Alfred Hitchcock.
Richard Strauss também é tido como um exímio e polêmico compositor de óperas. O uso das dissonâncias, de temas tidos como tabu, a fuga da tonalidade, lhe renderam várias vaias, como aconteceu, por exemplo, na première alemã de Salome, em 1906. A ópera conta parte da história de Salomé, princesa que pede ao pai a cabeça de João Batista. Musicalmente, é uma peça inovadora. Usa acordes dissonantes não usados antes, novas progressões, diferentes finalizações. Contudo, não foi apenas a música que chocou o público. A peça trata de um texto bíblico, e conta com cenas de necrofilia, cenas estas que estarreceram o tradicionalista público alemão. O escândalo gerado pela estréias de Salome em Dresden pode ser comparado ao da estréia parisiense de A Sagração da Primavera, de Stravinsky, em 1910 ou, inclusive, fugindo do cenário erudito, ao lançamento de Anarchy in U.K., dos Sex Pistols, em 1976. A estréia austríaca da ópera, semanas depois, ocorreu sem grandes incidentes.
Isso acontecia porque R. Strauss tinha uma visão de arte diferente da que tinham as massas. É o duelo entre a concepção do artista e a coletiva, que acompanhou toda a produção do século XX. Os artistas do início do século viam-se em cidades magistralmente adornadas, arquiteturadas, que exibiam toda sua exuberância física, camuflando a corrupção, a hipocrisia, o hedonismo excessivo, a pobreza de espírito do homem europeu. O escritor Thomas Mann, vendo essa sociedade, lançou a pergunta: "Pensai rebocar com cores vistosas a miséria do mundo?" Os artistas iniciavam a manifestar sua visão em sua arte. Uma arte que não tratava das fachadas, mas da realidade. Uma arte crua, chocante, revolucionária que, acima de tudo, retratava a visão dos artistas do mundo como ele realmente era. E nesse meio, na moderna e tumultuada Berlim, viveu Richard Strauss.
O que trago hoje da obra do alemão é algo completamente diferente do tão popular Also Sprach Zarathustra. O que venho mostrar é a última peça composta por Richard, um ciclo de quatro canções escrito em 1948, quando o compositor estava com oitenta e quatro anos de idade. Strauss não viveu tempo suficiente para assistir à première das Quatro Últimas Canções (Vier Letzte Lieder), em 1950. O ciclo consta de quatro poemas musicados, para soprano e orquestra. Três de Hermann Hesse, um de Joseph von Eichendorff. É aceito hoje que o próprio compositor não as tenha concebido como um ciclo único. Foi Ernst Roth quem as definiu como um ciclo único e ordenou como lhe pareceu conveniente, e daí em diante, até os dias atuais, é nessa forma que são apresentadas.
Os quatro poemas tratam de temas obscuros, ligados à morte. Contudo, tanto os poemas quanto a música fogem do estilo romântico tempestuoso, turbulento, denso. As quatro canções transmitem uma atmosfera de completa serenidade.
O grande desafio pra a peça está na voz da soprano, que deve sobrepôr-se sobre a orquestra, sem peso nenhum. É uma música leve, serena que, tratando da morte, nos leva a questionar: "será ela tão dolorosa assim?". Vier Letzte Lieder é o testamento musical que Richard Strauss nos deixa, seu último presente, sua última memória.
Seguem os vídeos das canções, com a doce voz de Kiri te Kanawa. A regência é de Sir Georg Solti, com a Filarmônica da BBC.
1. "Frühling"(Primavera) - Hermann Hesse
Em cavernas sombrias
sonhei longamente
com suas flores e céus azuis,
com seus odores e cantos de pássaros.
Agora você está revelada
com todo o brilho e adorno,
inundada de luzes
como um milagre diante de mim.
Você me reconhece novamente,
você me atrai docemente,
todos os meus membros tremem
com sua bem-aventurada presença!
2. "September"(Setembro) - Hermann Hesse
O jardim está de luto.
A chuva cai fria sobre as flores.
O verão estremece em silêncio,
aguardando o seu fim.
Douradas, folha após folha caem
do alto pé de acácia.
O verão sorri, surpreso e lânguido,
no sonho moribundo do jardim.
Muito tempo ainda junto às rosas
ele se detém, aspirando ao repouso.
Lentamente ele fecha
seus olhos cansados.
3. "Beim Schlafengehen"(Indo dormir) - Hermann Hesse
Agora que o dia me cansou,
serão meus fervorosos desejos
acolhidos gentilmente pela noite estrelada
como uma criança fatigada.
Mãos, parem toda atividade.
Fronte, esqueça todo pensamento.
Todos os meus sentidos agora
querem mergulhar no sono.
E minha alma, sem amarras,
deseja flutuar com as asas livres
para, na esfera mágica da noite,
viver uma vida profunda e múltipla.
4. "Im Abendrot"(No Crepúsculo) - Joseph von Eichendorff
Através de dores e alegrias,
nós caminhamos de mãos dadas;
agora descansamos da nossa errância
sobre uma terra silenciosa.
Em torno de nós se inclinam os vales
e já escurece o céu.
Apenas duas cotovias alçam vôo,
sonhando no ar perfumado.
Aproxime-se, e deixe-as voejar.
Logo será hora de dormir.
Venha, que não nos percamos
nesta grande solidão.
Ó paz imensa e tranqüila
tão profunda no crepúsculo!
Como nós estamos cansados dessa jornada -
Seria talvez isso já a morte?
Download da gravação de Felicity Lott, com Neeme Järvi e a Royal Scottish National Orchestra aqui.
Download da gravação de Anna Tomowa-Sintow, com Herbert von Karajan e a Berliner Philarmoniker aqui.
4 de dezembro de 2009
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